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Foto do escritorMargarida Nepomuceno

O Sagrado da genealogia africana e ameríndianas obras de Mestre Valentim

Atualizado: 22 de nov. de 2022




Rubem Valentim, serigrafia. IRV (Brasília)



Obá na Umbanda e no Candomblé é uma orixá, divindade da religião orubá, caracterizada por uma mulher guerreira, destemida, cheia de força e energia, sempre com o escudo e a espada nas mãos. O baiano Rubem Valentim (1922-1991), o obá da Casa de Mãe Senhora (Herkennhoff) do terreiro Axé Opô Afonjá, nasceu no mesmo ano da semana paulista de Arte Moderna. Se estivesse vivo, estaria fazendo, portanto, 100 anos e recordando, provavelmente, com bastante tédio o movimento dos bem comportados moços paulistas. Seu caminho foi outro, iniciando-se décadas após em meio a ousadas tentativas dentro e fora do Brasil. Na Bahia, participou do movimento de renovação da arte junto com Mario Cravo (1923), Carlos Bastos (1925) e demais artistas e escritores. Formou-se em Odontologia, depois em Jornalismo pela Universidade da Bahia, escreveu sobre arte antes de mudar-se para o Rio de Janeiro onde iniciou sua trajetória como artista. Morou em Roma, conheceu Julio Carlo Argan, grande crítico da história da Arte Moderna, viajou o mundo.


Na África, em 1966, participou do Festival Mundial de Artes Negras de Dacar, no Senegal. Suas pegadas estão por todo o Brasil produzindo mural, esculturas, dando aulas em universidades, participando de salões, criando ateliês e, sobretudo verbalizando seus pensamentos sobre a arte, a cultura afro-brasileira e ameríndia e posicionando-se frontalmente contra os modismos, enfim, todos os ismos. Em São Paulo é autor do Marco Sincrético da Cultura Afro-Brasileira, uma escultura de concreto, produzida especialmente para ser colocada na Praça da Sé, marco zero da cidade, em 1979. Redescobre a cultura do Recôncavo Bahiano, sua comida, as cerâmicas, os ex-votos, que é a produção popular de agradecimento às graças recebidas. Aproxima-se das fotos e imagens africanas de Pierre Verger e aprofunda-se na compreensão sobre a importância das religiões de matrizes africanas.


Os símbolos da Umbanda e Candomblé, as entidades e seus poderes, o encantam e o fazem pensar na genealogia da cultura africana, na riqueza ancestral dos povos, tão barbaramente subjugadas durante o período escravista. Fé e arte, fé e geometria compõem-se dentro de uma vertente construtivista, que guarda algum paralelo com o trabalho do uruguaio Torres Garcia. Valentim via a transcendência de sua história e acrescentava símbolos relativos à cultura e religião afro e ameríndia, como os revelados pelos totens, verdadeiros altares onde habita o divino, feitos em têmpera.




Rubem Valentim. Emblema, s/data.


Fé e arte, fé e geometria compõem-se

dentro de uma vertente construtivista para a descoberta da teogonia das divindades



Trabalhava com o alfabeto Quitônico, que é a energia que vem do centro da Terra. Quinze símbolos que baseavam a sua obra. Em finais dos anos 70 inicia uma outra fase dos seus trabalhos dedicando à arte pública; “Atualmente, minha arte busca o espaço a rua as praças, os conjuntos arquitetônicos urbanísticos”, escreveu no Manifesto Ainda que Tardio, em 1976. Suas obras estão em muitos acervos do Brasil e em países de todo o mundo (Instituto Rubem Valentim, 2017).



Não sou bem-nascido, pelo contrário,

sou um homem áspero, agressivo,

desesperado que procura a divindade.


Na avaliação dos curadores do Museu Afro Brasil, hoje Museu Afro Brasil Emanoel Araújo:

“O artista empregava cores sólidas e contrastantes para ressaltar a geometria das formas, e frequentemente compunha suas obras com um forte senso de simetria, organizada bilateralmente a partir de um eixo vertical (característica que também existe em muitos dos signos empregados nas religiões afro-brasileiras). Em alguns casos, essa simetria era insinuada, mas não plenamente realizada; em outros, ela era simultaneamente complementada e perturbada por uma sugestão parcial de simetria alto-baixo” (Revista Museu AfroBrasil).


O Manifesto Ainda que Tardio, escrito por Valentim, em 1976


Valentim imprime milhares de manifestos para distribuir em todos os centros de cultura. No Manifesto, declarava-se independente, fruto de suas próprias pesquisas e aproximação com a iconografia afro-ameríndia nordestina, de onde se inspira para criar as formas não verbais do povo brasileiro.


Critica firmemente os artistas que correm atrás dos ismos e enquanto isso acontecia, Valentim dizia defender a cultura do nordeste, cultura negra, mestiça e barroca. Defendia os ex-votos, nos signos litúrgicos do povo brasileiro, na cerâmica popular. Temos que fazer uma arte mestiça, afirmou no manifesto. Segue um trecho desse Manifesto:

“Eu não nasci na Europa, não tive educação europeia, não tenho punhos de renda, não nasci pra ser diplomata. Não sou bem-nascido, pelo contrário, sou um homem áspero, agressivo, desesperado que procura a divindade. O Ser dos Seres. Assim, o que eu tinha para me apegar era o Brasil” (Valentim, 1976).





Um jornalista baiano, formado em odontologia, completo em suas interfaces: professor, artista-ativista, Obá e pensador!

Em 1976, já falava em colonialismo cultural. Foto IRV




Manifesto ainda que tardio:

depoimentos redundantes, oportunos e necessários

Rubem Valentim, 1976





Rubem Valentim.Emblema 90, 1990.






Rubem Valentim. Têmpera sobre cartão. s/ data.




Minha linguagem plástico-visual signográfica está ligada aos valores míticos profundos de uma cultura afro-brasileira (mestiça-animista-fetichista).


Com o peso da Bahia sobre mim – a cultura vivenciada; com o sangue negro nas veias – o atavismo; com os olhos abertos para o que se faz no mundo – a contemporaneidade; criando os meus signos-símbolos procuro transformar em linguagem visual o mundo encantado, mágico, provavelmente místico que flui continuamente dentro de mim.

O substrato vem da terra, sendo eu tão ligado ao complexo cultural da Bahia: cidade produto de uma grande síntese coletiva que se traduz na fusão de elementos étnicos e culturais de origem européia, africana e ameríndia.


Partindo desses dados pessoais e regionais, busco uma linguagem poética, contemporânea e universal, para expressar-me plasticamente. Um caminho voltado para a realidade cultural profunda do Brasil – para suas raízes – mas sem desconhecer ou ignorar tudo o que se faz no mundo, sendo isso por certo impossível com os meios de comunicação de que já dispomos, é o caminho, a difícil via para a criação de uma autêntica linguagem brasileira de arte. Linguagem pluri-sensorial: O sentir brasileiro.




Rubem Valentim. Emblema, 1979.






Rubem Valentim. Figura XIII, 1968


Uma linguagem universal, mas de caráter brasileiro com elementos de diferenciação das várias, complexas e criadoras tendências artísticas estrangeiras.


Favorável ao intercâmbio cultural intensivo entre todos os povos e nações do mundo; consciente de que as influências são inevitáveis, necessárias, benéficas quando elas são vivas, criadoras, sou entretanto contra o colonialismo cultural sistemático e o servilismo ou subserviência incondicional aos padrões ou moldes vindos de fora.


A iconologia afro-ameríndia-nordestina-brasileira está viva. É uma imensa fonte – tão grande quanto o Brasil – e devemos nela beber, com lucidez e grande amor. Porque perigos existem: como o modismo; as atitudes inconseqüentes, inautênticas, os diluidores com mais ou menos talento, mais ou menos honestidade, pouca ou muita habilidade, sendo que os mais habilidosos e vazios são os mais danosos, porque geradores de equívocos; as violentações caricatas do folclore do genuíno; as famigeradas “estilizações” provincianas e o fácil pitoresco que levam a um subkitsch tropicalizado e ao efeitismo subdesenvolvido.


Intuindo o meu caminho entre o popular e o erudito, a fonte e o refinamento – e depois de haver feito algumas composições, já bastante disciplinadas, com ex-votos, passei a ver nos instrumentos simbólicos, nas ferramentas do candomblé, nos abebês, nos paxorôs, nos ocês, um tipo de fala, uma poética visual brasileira capaz de configurar e sintetizar adequadamente todo o núcleo de meu interesse como artista.


O que eu queria e continuo querendo é estabelecer um design (Riscadura Brasileira), uma estrutura apta a revelar a nossa realidade – a minha, pelo menos -, em termos de ordem sensível. Isso se tornou claro por volta de 1955-56 quando pintei os primeiros trabalhos da seqüência que até hoje, com todos os novos segmentos, continua se desdobrando.



Rubem Valentim. Emblema. Serigrafia



Rubem Valentim. Gravura, 1979.


Minha arte tem um sentido monumental intrínseco. Vem do rito, da festa. Busca as raízes e poderia reencontrá-las no espaço, como uma espécie de ressocialização da arte, pertencendo ao povo.


É a mesma monumentalidade dos totens, ponto de referência de toda a tribo. Meus relevos e objetos pedem fundamentalmente o espaço. Gostaria de integrá-los em espaços urbanísticos, arquitetônicos, paisagísticos.


Meu pensamento sempre foi resultado de uma consciência de terra, de povo. Eu venho pregando há muitos anos contra o colonialismo cultural, contra a aceitação passiva, sem nenhuma análise crítica, das fórmulas que nos vêm do exterior – em revistas, bienais, etc. E a favor de um caminho voltado para as profundezas do ser brasileiro, suas raízes, seu sentir. A arte não é apanágio de nenhum povo, é um produto biológico vital.


(,,,) Concluindo: a Arte Brasileira só poderá ser um produto poético, autêntico quando o resultado do sincretismo e aculturações sígnicas (semióticas/semealogia não verbal) das culturas formadoras da nossa nacionalidade de base (branco-luso-negro-índio) acrescidas da contribuição das culturas mais recentes trazidas pelos diferentes povos de outras nações e que, aqui nesse espaço Brasil-Continente comum a todos, se misture criando um sistema de brasilidade cultural de caráter singular, do rito, mito, ritmo que sejam inconfundíveis apesar da famigerada Aldeia-Global. O fundamental é assumir a nossa identidade de povo em termos de Nação. Mais sobre o Manifesto e sobre o artista Rubem Valentim:



Instituto Rubem Valentim- Brasília, inaugurado em maio de 2017. Obras, vida pessoal, exposições, Acesse: https://www.institutorubemvalentim.org.br/o-instituto




Ñandutí Serviços de Educação e Cultura

nanduticontato@gmail.com

O Sagrado da genealogia africana e amerìndia

nas obras de Mestre Valentim

Imagens: cedidas pelo Instituto Rubem Valentim

Edição: Mayra Coan Lago e Fabiana Oliveira

Revista Ñandutí

Margarida Nepomuceno MTB 16 276

20/11/2022





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