Eu vi o mundo.
Ele começava em Vitória da Conquista, na Bahia
Tapeçaria Madalena Santos Reinbolt. S/Título. Coleção Particular. Mostra MASP. Foto da autora.
O bordado sempre foi considerado uma espécie de linguagem feminina, uma extensão poética, às vezes complexa, que ajuda a situar as mulheres, seu tempo, suas ações. Entrelaçado a uma tela, constitui um suporte por onde circulam pensamentos que, muitas vezes, só encontram materialidade no cruzamento entre linhas, como é o caso de Rosana Paulino e suas memórias ou de Letícia Parente, que utilizou a frase “Made in Brazil” bordada na planta do próprio pé, como protesto contra a ditadura de 64. Podemos citar dezenas de outras produções estéticas, de uso atual inclusive de demais gêneros, que utilizam ou utilizaram os bordados como prolongamento de ações criativas e transversais. Uma delas é o que nos apresenta o MASP, em “Madalena Santos Reinbolt: uma cabeça cheia de planetas”, mostra em cartaz desde novembro de 2022 e que faz parte do programa “Histórias Brasileiras”, desenvolvido pelo museu. A exposição reúne no “aquário”, sala de vidro no subsolo do museu, 44 obras entre pinturas e bordados produzidos pela artista entre as décadas de 1950 e 1970. Salvo uma ou outra obra, a maioria pertence a coleções particulares.
Sem estudos, Madalena exerceu,
desde Salvador, depois Rio de Janeiro e Petrópolis
a função de empregada doméstica
Madalena Santos Reibolt (Vitória da Conquista, 1919 - Rio de Janeiro, 1977) é uma das muitas artistas, mulheres e negras, cuja trajetória é ainda desconhecida do público e do meio artístico. Nunca se dedicou exclusivamente à arte. Trabalhava como doméstica desde que chegara ao Rio de Janeiro, no final dos anos 30 e pintava, mais que bordava, nos intervalos de suas atividades, até que em 1949, na cidade de Petrópolis, na residência da arquiteta Lota Macedo Soares (1910-1967), foi incentivada a exercer com mais afinco sua arte. De família de artesãos, desde muito nova já estava em contato com a cerâmica, a tecelagem, fazendo pinturas e bordados, mas descobriu-se artista e cronista afetiva de suas origens a partir da convivência com a arquiteta brasileira. Madalena dedicou-se, a partir desse marco, quase que exclusivamente aos bordados utilizando no entrelaçamento entre linhas e telas, compostas por talagarça ou estopa, a mesma densidade pictórica que caracterizava suas pinturas. Na verdade, ela pinta como borda e borda como pinta. Às vezes, um pouco à distância, esses afazeres se confundem e os bordados se assemelham à uma pintura matéria. André Mesquita, curador da mostra, sintetiza: “Ela pensava na agulha com a linha quase como um prolongamento da mão. Era como se fosse um pincel”.
Tapeçaria de Madalena Santos Reinbolt. S/Título. Mostra MASP. Coleção Particular.
Fotos da autora
Pinta como borda, borda como pinta.
As linhas são como os seus pincéis
Seus trabalhos evocam as cenas de infância, do meio em que viveu, da natureza ao mesmo tempo ingênua de sóis ou luas e as exuberantes cores dos campos e das cidades sertanejas. Ela própria dizia que enxergava uma cidade através de outra. Madalena faleceu no Rio de Janeiro em 1977, mas ao que parece carregou um repertório construído pelas imagens de sua própria cidade, suas origens, festas e costumes de sua gente, animais de estimação, frutas e matas, caminhos e cidades com suas portas e janelas. Madalena registrou a cultura econômica dos homens do sertão, o trabalho com o gado e outros animais e, em especial, o culto da religiosidade através de ritos fúnebres e católicos e dos personagens do clero. Não tingiu, mesclou ou disfarçou de marrom claro a pele preta de sua gente, homens, mulheres e crianças - personagens centrais de sua narrativa.
Todos esses elementos e peças pictóricas trançados seguem uma disposição de mosaico, sem hierarquia ou linearidade, que se encaixam criando um mundo mágico, fruto da simbiose entre lembranças, imaginação e testemunho da história de si mesma e de seu povo. De fato, Madalena possuía uma constelação de planetas alinhavados em sua cabeça.
Tapeçaria de Madalena Santos Reinbolt. S/Título. Mostra MASP. Coleção Particular.
Fotos da autora
Madalena não cursou escolas. A família, como já mencionado, foi seu maior estímulo. Ficou à margem, como tantas outras artistas, invisível do meio artístico e do circuito crítico até bem recentemente, escondida em coleções particulares como uma das expressões da arte popular brasileira, fato que nos instiga a repensar o lugar das artistas mulheres e negras. Impensável como lugar de respeito naquele momento em que o trabalho doméstico das negras, era um estágio minimamente melhorado do patamar da escravização a que esteve submetida a sua gente, muito provavelmente sua mãe e avó, e o máximo que uma aspirante de artista poderia chegar, negra e sem formação era engrossar o acervo de folcloristas nordestinas (há que se ressaltar o fato dessa exposição do Masp ser a primeira individual da artista) condição desfavorável que se deu mesmo em Petrópolis, na residência sofisticada da arquiteta Lota Macedo Soares, que depois de um tempo de havê-la incentivado, e vendo-a dividida entre limpar e passar ou pintar e bordar, dispensou-a do trabalho.
Tapeçaria de Madalena Santos Reinbolt. S/Título. Mostra MASP. Coleção Particular.
Fotos da autora
Quem primeiro trouxe Madalena para os paulistas conhecerem foi o genial e sempre saudoso Emanoel Araújo, que desde 2006 conserva no acervo do Museu Afro-Brasileiro alguns de seus principais bordados. Uma das últimas exposições do curador, Madalena Santos Reinbolt teve lugar de destaque em meio às demais artistas mulheres.
A mostra “Madalena Santos Reinbolt: uma cabeça cheia de planetas”, a primeira individual da artista no Brasil, tem a curadoria de Armanda Carneiro e André Mesquita. Está em cartaz no Masp desde novembro de 22 e vai até 26 de fevereiro, portanto, é uma excelente (e urgente) oportunidade para conhecê-la!
*A semelhança com o título da obra de Cícero Dias não é mera coincidência.
Serviço/sugestões:
Tapeçarias de Madalena Santos Reinbolt. S/Títulos. Mostra MASP. Coleção Particular.
Fotos da autora
Há muito ainda o que se pesquisar sobre Madalena. Apresentamos alguns caminhos: o trabalho crítico de Aline Reis Chiarelli em Madalena Santos Reinbolt, Memória e Arte Popular: uma questão para a Arte Afro-Brasileira. Acesso: http://celacc.webhostusp.sti.usp.br/sites/default/files/media/tcc/2021/01/2021_aline_reis_chiarelli_artigo.pdf
Resenha crítica da antropóloga Lélia Coelho Frota (1938-2010). Criação limiar na arte do povo: a presença do negro. In: ARAUJO, Emanoel (Org.). A mão afro-brasileira: significado da contribuição artística e histórica. 2. ed. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo/ Museu Afro Brasil, 2010. v. 1. p. 300-327.
Ñandutí Serviços de Educação e Cultura
nanduticontato@gmail.com
Madalena Santos Reinbolt: uma cabeça cheia de planetas
Curadores: Armanda Carneiro e André Mesquita.
MASP
Museu de Arte de São Paulo
Av. Paulista 1578
SOMENTE ATÉ O FINAL DESTA SEMANA(25/26)
Catálogo de Madalena S Reibolt
Edição Ñanduti: Mayra Coan Lago e Fabiana Oliveira
Revista Ñandutí
Margarida Nepomuceno MTB 16 276
19/02/2023
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