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Foto do escritorMargarida Nepomuceno

Mulher, artista e negra: Maria d'Apparecida – negroluminosa voz

Atualizado: 9 de mar. de 2022

Em 2018, a Pinacoteca de São Paulo promoveu uma mostra de arte com duas curadoras latino-americanas, a argentina Andrea Giunta, professora de Filosofia e História da Arte da Universidade de Buenos Aires e da Universidade do Texas, e Cecilia Fajardo-Hill, venezuelana e docente da Universidade de Essex, na Inglaterra, sobre mulheres artistas, denominada “Mulheres radicais”.


Uma das discussões levantadas foi sobre o conceito de artista. Para as curadoras, artista é um conceito construído para definir uma categoria de pessoas que se dedicam a fazer arte, que investem seu tempo na produção de obras – que podem ser objetos concretos, simbólicos ou imaterial –, e uma boa parte das artistas representadas não se encaixava nesse perfil. Não tinham dedicação constante no fazer artístico, uma vez que suas tarefas, socialmente estabelecidas, convocavam-nas para outros campos reservados ao papel feminino. A mostra teve excelente repercussão, pois as curadoras, ignorando a dedicação exclusiva ou não das artistas apresentadas, dedicaram-se a expor e analisar as obras que haviam realizado. Procuravam naquela mostra responder a provocação que norteia todos os historiadores e críticos que se dedicam à História da Arte, formulada pela crítica americana Linda Nochlin, em 1971: porque não existiram grandes artistas mulheres?


Independente do menor ou maior grau de comprometimento com os propósitos feministas nesse campo, emergem, a cada dia, escritos sobre as mulheres artistas e suas obras, mulheres que se dedicaram parcial ou totalmente a alguma modalidade da arte e que estiveram “olvidadas” pela historiografia da arte ou pelos condicionantes dos movimentos artísticos. E aqui, relembro os pressupostos tidos como tirânicos dos modernismos, especialmente os de inspiração europeia.


O artista moderno era homem e flaneur,

missão impossível para as mulheres

que deveriam permanecer nas Academias


O ideal, por exemplo, para Baudelaire (2019) era que o artista moderno perambulasse pela cidade, captando seus ruidosos movimentos, registrando e observando com uma renovada sensibilidade tudo à sua frente, à moda de um “flaneur”. No caso, missão impossível de ser cumprida por uma mulher naqueles tempos de transição para a modernidade, mas extremamente masculinos. Mulheres artistas... somente as recomendadas para frequentar as academias e dedicadas aos gêneros artísticos considerados menores, como paisagens, retratos, cenas do cotidiano, etc. (Simioni, 2019).


Maria d´Apparecida, negroluminosa voz, livro de autoria da franco-brasileira Mazé Chotil, publicado em 2020, nos revela a história de uma dessas mulheres, que apesar da dedicação de vida inteira para a música – primeiro o canto lírico e depois a música popular brasileira –, ficou completamente desconhecida do meio musical até bem pouco tempo. Maria d´Apparecida (1926-2017), além de mulher dedicada ao canto lírico, era negra, filha bastarda de uma empregada doméstica e sem condição alguma de obter uma educação musical sistemática. Esse perfil é, por certo, parte das razões que a levaram ao anonimato, à quase inexistência da historiografia das cantoras líricas nacionais, muito embora conseguisse reconhecimento e prestígio na Europa, particularmente em Paris, local que escolheu para desenvolver e viver da sua arte, após os anos 60.




A invisibilidade da artista resulta da presunção

de que o espaço da música clássica

pertence à elite culta, tradicional e branca


A jornalista Mazé Chotil, pesquisadora e autora de muitos livros, resgata nessa nova pesquisa, publicada pela Alameda, a importância de Maria d`Aparecida, mostrando sua itinerância flaneur pelo mundo artístico dentro e fora das fronteiras brasileiras. Aqui, o reconhecimento demorou a chegar e é ainda muito restrito. Mesmo na Europa, berço dos clássicos, só a perceberam quando ela substituiu Maria Callas, na peça Carmen. Maria d´Apparecida integrava, nessa ocasião, em 1965, a companhia que atendia os grandes artistas. Segundo a autora, depois desse episódio, Maria d´Apparecida teve destaque no meio artístico europeu como mezzo-soprano.



A cantora lírica Maria d'Apparecida


Mazé nos conta ainda muitos outros episódios grotescos e cruéis que constrangeram e humilharam a soprano, ofensas fruto dos racismos, que diminuíram quando ela conseguiu firmar-se com respeito, mas não deixaram de existir, mesmo estando ela em posição “protegida”, privilégio de estar ao lado de grandes artistas europeus – um dos quais se tornou seu companheiro, Félix Labisse, pintor francês da geração de surrealistas.


Ausência de interesse reforça preconceitos


Por inúmeras ocasiões foi tratada como um personagem de curiosidade, como peça dos antigos museus, ou como estravagante latina, aos moldes do que foi igualmente tratada Carmen Miranda, com suas bananas na cabeça. Confundiram-na com outras personagens a ponto de que, em 1964, na capa da revista francesa Sciences Voyage, Maria d´Apparecida apareceu estampada com uma roupa de Carmen Miranda, como típica expressão do folclore brasileiro. A nota aparecia sem ao menos uma explicação das personalidades brasileiras e de seus diferentes fazeres artísticos, comprovando ausência completa de interesse.


São dezenas de histórias, imagens e documentos. Muitas dessas histórias de reconhecimento por compositores de inúmeras nacionalidades que a consideravam com muito respeito, inclusive o músico Baden Powell, com quem cantou, após sofrer um acidente que a impossibilitou de subir aos palcos como cantora lírica.


No Brasil, o poeta Carlos Drummond de Andrade escreveu em uma ocasião: “Tua voz, Maria d´Apparecida, é aparição fulgurante, sensitiva, dramática e vem do fundo negroluminoso de nossos corações” (Chotil, 2020).


Maria d´Apparecida- negroluminosa voz

Mazé Torquato Chotil

Esboço biográfico com imagens

São Paulo, Alameda

181 pgs. 2020


Referências

BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. São Paulo: Penguin, 2019.

CHOTIL, Mazé T. Maria d’Apparecida – negroluminosa voz. São Paulo: Alameda, 2020.

SIMIONI, Ana P.C. Profissão artista: pintoras e escultoras acadêmicas brasileiras. São Paulo: Edusp, 2019.



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