Fonte: Acervo pessoal de Margarida Nepomuceno.
Nesses 100 anos comemorativos da Semana de Arte Moderna de 22, ocorrida em fevereiro no Teatro Municipal de São Paulo, inúmeras reflexões já estão sendo elaboradas sobre a importância desse evento e o legado que deixou para as gerações subsequentes. Dentre as várias interpretações que surgem há quem defenda ser necessário que se reveja a concepção de centralidade da semana paulista para o desenvolvimento do Modernismo no Brasil, uma vez que esse movimento, na concepção tipificada pelas vanguardas dos centros da arte internacionais somente teria se manifestado no Brasil nos anos 50, com as produções concretistas e neoconcretistas. Portanto, se considerarmos o universo interpretativo do Modernismo brasileiro o marco temporal para a revisitação crítica do movimento deve ser expandido até as décadas posteriores à Semana de Arte de 22. Antes até, se levarmos em consideração que intelectuais, artistas e literatos além do eixo sudeste do país, já se arriscavam a projeções modernistas desde finais do século XIX. Artistas esses, que circulavam pelo mundo e que participavam, quer como observadores ou como aprendizes nas academias e centros de cultura européias, testemunhando as mudanças na arte.
Através das atividades comemorativas que tiveram início em 2021, alguns eixos interpretativos sobre a semana interpõem-se: o primeiro deles, genericamente já mencionado acima, coloca a Semana paulista como epicentro do Modernismo Brasileiro, desencadeando e modelando as demais experiências que surgiriam no restante do país. O segundo eixo, reduz parcialmente a importância desse evento e a geração de ativistas paulistas, e busca considerar demais atores culturais e núcleos regionais que trabalhavam na mesma direção. A Semana seria, como bem resume a jornalista e crítica Aracy Amaral, uma “enunciadora do novo”[1] lembrando Adorno quando enfatiza : “O novo é o desejo do novo, não é o novo em si. Esta é a maldição de tudo o que é novo”. [2] Outras iniciativas do gênero ocorridas naquele início de século deveriam, segundo essa visão, ser incorporadas à história do movimento. Importante acrescentar uma terceira perspectiva nesse mosaico de ideias, manifestada por novos críticos, jornalistas, e profissionais, que é a revelação de ausências, expressões artísticas da arte popular, de regionalismos distantes dos eixos urbanos e de populações periféricas, que ficaram invisibilizados, excluídos dos registros do Modernismo dessa década e das subsequentes, em livros (didáticos ou não), das coleções de fotografias, das comemorações e dos acervos dos museus.
Afirmação Modernista Carioca
Desde novembro de 2021, a mostra A Afirmação Modernista- a paisagem e o popular carioca na Coleção Banerj, no Paço Imperial, Rio de Janeiro, reúne 127 obras de artistas como Di Cavalcanti, Cícero Dias, Carybé, Guignard, Pancetti, Portinari, Anita Malfatti, Eliseu Visconti, Aldo Bonadei, Osvald Goeldi e outros com o intuito de confirmar a visão de que enquanto São Paulo se arvorava o protagonista na Semana de 22 e do Modernismo, artistas cariocas já circulavam com suas produções pensando a paisagem e as manifestações populares como algo moderno. Louvável a iniciativa do extinto Banerj em tornar público seu acervo e revelar produções sobre a paisagem urbana do Rio, especialmente com Djanira, Di Cavalcanti e Goeld, entretanto a redução da importância do evento paulista é visível nessa mostra e no meu entender, profundamente equivocada quando tenta comparações entre produções de cariocas e paulistas. Talvez o título “A Afirmação Modernista Carioca” se harmonizasse mais aos propósitos de aparente diálogo.
Revendo a Semana de 22
De março a dezembro de 2021, foram realizados os primeiros debates on line, na Pinacoteca do Estado, em torno do tema “1922: Modernismos em Debate”. As atividades foram organizadas por várias instituições de São Paulo: MAC-USP, Instituto Moreira Sales e Pinacoteca e reuniu 40 pesquisadores e críticos de arte para discutir a importância da Semana e problematizar os vários aspectos do evento/Modernismo brasileiro e suas consequências para a vida cultural do país. Longe da exaltação celebrativa ou da trivialidade das disputas regionais, a tônica dos debates trouxe elementos, experiências e muitas contribuições referenciais para se pensar o movimento em espaços e momentos historicamente determinados. Algumas reflexões estiveram no centro dos debates: a centralidade da Semana e do Modernismo paulista, a presença e ausências dos negros, das mulheres, dos povos indígenas, dos regionalismos, do popular, as questões concernentes ao nacionalismo, entre outras.[3]
Epicentro Paulista: velhas e novas questões
Fonte: Acervo pessoal de Margarida Nepomuceno.
As análises sobre o protagonismo ou a centralidade do modernismo paulista na cena brasileira não são novas. Pelo contrário. Há cerca de 30 anos, exatamente em abril de 1993, o colóquio Modernidade e Modernismo no Brasil, realizado pela Escola de Comunicações e Artes da USP já apontava para um cenário cultural complexo naquele início de século, quando realizou-se a semana e a existência de um ativismo de outras regiões. Annateresa Fabris, organizadora do evento, ao fazer a introdução do livro publicado a posteriori,[4] referiu-se a dificuldade de rever uma historiografia elaborada pelos próprios protagonistas do Movimento. No texto intitulado Modernidade e Vanguarda: o caso brasileiro, a autora vê com cuidado o empenho pela revisão do Modernismo uma vez que, segundo ela haveria “(...) um esforço para ir além das teorizações que constituem seu auto-retrato místico, e de outro, uma atenção redobrada para não cair nas simplificações do discurso pós moderno e de sua vontade de erguer-se como antagonista do modernismo”. Questionou: “o que fazer para não cair em tais armadilhas sem se deixar contaminar pela autocelebração ou pela radicalização contrastiva”?
Dezenas de outros eventos estão sendo organizados pelo governo do Estado junto às instituições paulistas, muitos trazem as reflexões sobre a Semana dentro de perspectivas críticas da cultura contemporânea, priorizando as discussões sobre as relações culturais centro/ periferia tais como a mostra "Antropofagia" nas Fábricas de Cultura da Zona Norte, Zona Sul e Diadema; encontros ( on line) sobre “Censura e Produções artísticas”; debates sobre os Museus-Casas (Casa Guilherme de Almeida/SP e Casa de Portinari/Brodósqui); mostras das produções afro modernistas no Museu Afro-brasileiro; exposições e discussões sobre singularidades dos grafites e demais mostras de artistas/críticos específicos como Brecheret, John Graz, Portinari, Mario de Andrade, entre outros. Estão agendados também debates sobre música, teatro, design, arquitetura e escultura na ambiência do centenário. Ver programação completa neste site [5].
Modernidade e Modernismos na América Latina: início das atividades do Ñanduti
As relações com novos temas, sociais e políticos, acima elencadas são importantes e prometem redesenhar a história do Modernismo brasileiro para o desenvolvimento cultural do país. Nesse esforço, Ñanduti, que ora se apresenta, pretende acompanhar essas discussões e contribuir com a inclusão das experiências do Modernismo Latino-Americano. Entendemos que esses estudos devem ser elaborados nesse contexto uma vez que há uma relação visceral entre as várias experiências modernistas ocorridas nos países da região com os processos históricos que marcaram as comemorações das independências e reafirmação das nacionalidades.
O termo América Latina, em sua origem (1850), demarcou política e geograficamente localidades distintas no globo, aproximando nações, ainda em formação, que preservavam uma unidade resultado dos processos históricos, mas com particularidades e culturas específicas que sempre estiveram interligadas.
Importante considerar essa perspectiva ao incluir nas análises o conjunto das manifestações artísticas registrados nos países da região no momento em que surgem os modernismos, que foram muitos e distintos. São outros os parâmetros de análise para se entender os modernismos que ocorreram na América Latina. A autonomia da arte, o endeusamento da forma, pressupostos sagrados do modernismo eurocêntrico, passou ao lado e em função da principal preocupação dos artistas latino-americanos comprometidos, naquele momento, em sua grande maioria, com a construção dos valores culturais da nacionalidade.
Além de novos referenciais e parâmetros inspirados na realidade histórica latino-americana é fundamental considerarmos as expressões artísticas que foram excluídas do vernáculo modernista pois não se moldavam às tais categorias de inspiração eurocêntrica nem aos projetos de modernidade das nossas elites. Uma modernidade que apenas alterou os laços de dependência e subalternidade.
Necessário voltar os olhos para as manifestações da cultura dos povos afro-ameríndios legada pelos 300 anos de escravidão; a cultura de gênero, particularmente o trabalho coletivizado das artesãs ; as cestarias, as cerâmicas; a música, a dança, a escultura, o teatro, as rendas, as imagens, enfim, todas as representações populares (de codinome “folclore”), entre demais produções. Culturas formadas ao longo dos séculos pelas populações mestiças, ribeirinhas, imigrantes, afrodescendentes, ameríndias, expressas nas artes, nos costumes, nos contos, na religião e na mitologia. Expressões de vida marginalizadas, que fizeram a riqueza dos povos latino-americanos. Boa parte dessas culturas foi tida como anacrônica, retrógrada, caipira, obsoleta, e grande parte ficou fora da festa modernista, desprezada pelas vanguardas, mesmo as nacionalistas, sem lugar no sagrado altar dos Modernos.
Ñanduti pretende não só acompanhar, mas participar desses debates. Em março, iniciamos nossas atividades acadêmicas com o curso Modernidade e Modernismos na América Latina e muitos desses pontos serão discutidos durante a realização de quatro encontros.
[1] “1922: Modernismos em Debate”, mesa 1. Pinacoteca do Estado (SP). Março de 2021. [2] A Imagem na cidade moderna: o cenário e seu avesso In Modernidade e Modernismo no Brasil. 1994. Citação Jorge Schwartz/Adorno. P89. [3] Debates podem ser vistos nos sites da Pinacoteca do Estado ou no Instituto Moreira Sales. [4] Modernidade e Modernismo no Brasil. Annateresa Fabris (Org). Campinas. Mercado das Letras, 1994. [5] Ver programação completa neste site: https://www.nanduti.com.br/semanadeartemoderna
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