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Foto do escritorMargarida Nepomuceno

Curiosidade pelo Novo Museu do Ipiranga

Atualizado: 20 de set. de 2022

leva milhares de pessoas a caminhar pelos corredores da sua própria história



A pintura de História ou Pintura Histórica, gênero dos mais tradicionais na Arte, considerada durante muito tempo a mais nobre das modalidades artísticas teve uma importância substancial na formação dos Museus de Arte não somente do Brasil, mas em outras partes do mundo. No Brasil, a primeira instituição de arte, a Academia Imperial de Belas Artes, depois Museu Nacional de Belas Artes confundiu-se com os museus históricos brasileiros, criados em período posteriores[1], uma vez que seus acervos destinaram-se a armazenar os primeiros passos da edificação política da nação brasileira.


Reunindo as principais pinturas de representação do passado, boa parte dos museus, criados na América Latina a partir dos processos das Independências formou seus acervos através da doação de coleções particulares e tinha como finalidade reunir objetos variados das áreas da antropologia, história e arte, artefatos variados como fotografias, mapas, documentos pessoais, aquisições de guerras e demais objetos adquiridos entre áreas existentes nas sociedades, com o propósito de preservar a história, a memória e a cultura de seus cidadãos.

Do mesmo modo que as Histórias iam sendo escritas, imagens pictóricas estavam sendo elaboradas para simbolizar os grandes acontecimentos históricos. Os pintores elegeram as independências como um de seus temas relevantes". (Prado, Pelegrino, 2014, p89).


Inspirados nos grandes museus europeus, essas instituições, inicialmente, extensos depositários de objetos, passaram a exercer um papel ativo como colaboradores na edificação de um projeto civilizatório do país. Segmentaram-se, especializando-se em determinadas áreas, pretendendo se tornar reconhecidos templos da cultura, guardiões das mais altas representações dos valores da nacionalidade. Eram esses os propósitos que moviam as instituições em suas origens, desde princípios do século XIX até o advento dos modernismos.


A partir desse momento - e em cada país houve um marco temporal modernista específico, ocorreram novas transformações na arte, de tal forma que isso refletiu nos museus. A cenografia das mostras e acervos, anteriormente pensada sob a perspectiva espacial da hierarquia de gênero artístico sofreu alterações[2], da mesma forma que o perfil para a aquisição de novos acervos foram repensados abrindo espaços para produções mais modernas e que expressavam, naquele momento, a ascensão de uma classe média urbana.


Retratos de grandes heróis fundadores da Pátria, cenas memoráveis de guerras e conflitos na região, representações apoteóticas da conquista ibérica e na mesma esteira, demais pinturas consideradas acadêmicas, muitas das quais doadas por artistas que frequentaram as academias europeias, perderam a centralidade nos museus e foram congeladas, amontoadas, abarrotadas e simplesmente esquecidas em boa parte nas reservas técnicas.


Um equívoco, expressaria o historiador Paulo César Garcez Marins, curador do Museu Paulista e docente da Universidade de São Paulo, ao analisar o ostracismo a que foram relegadas as pinturas de história não somente no Brasil, mas também na Europa, uma vez que essa produção é considerada como recurso de indiscutível importância para a compreensão da formação dos imaginários sociais (Marins, 2019, p2). Em seu texto sobre o dossiê organizado “Pintura de História no Museu Paulista”, o historiador mostra que esse esquecimento foi um fenômeno perceptível na maioria das instituições museais, inclusive na Europa, berço das academias de arte, e que para ele, resultou do


desdém advindo dos postulados teóricos e críticos estabelecidos pelas correntes de vanguarda do século XX, a pintura de história da segunda parte do Oitocentos e das primeiras décadas do século XX foi tornada opaca nas grandes narrativas historiográficas sobre a arte europeia” (Marins. 2019, p2).


Portanto, esse foi um fenômeno ocorrido nos centros europeus e nos cenários regionais. Em tempos recentes de reavaliação da Semana de Arte de 22, no Brasil, temos visto o quanto foi prejudicial para a compreensão das produções artísticas naquela primeira metade do século XX, a exclusão de grande parte das culturas populares, dos povos indígenas e das populações afro-latinas do círculo modernista, como resultado da “tirania do gosto” (COLI,2004) desses tais pressupostos da época, que ditavam o que era moderno ou não. Muitos dos objetos e artefatos fruto de coleções antigas foram despejados nos museus etnográficos ou de História Natural como representações aprisionadas de espécimes humanas exóticas. Evidências de destrato hoje analisadas e trazidas à luz pelas novas discussões sobre os modernismos brasileiros, que foram diversos, e que revelam a profunda dificuldade de se manter acessíveis ao público, as produções artísticas consideradas fora dos parâmetros modernistas e, sobretudo, aquelas que representavam o passado, moldadas nas academias de arte, como as pinturas de história.


É sobre essa produção invisibilizada até bem pouco tempo,

que vamos desenvolver esse artigo, impelidos pelo momento celebrativo do Bicentenário da Independência do Brasil.


Pretendemos analisar a principal obra artística que se refere à Independência do Brasil, de Pedro Américo e algumas telas de eventos históricos correlatos, à luz de uma estética que pretendeu, no campo da arte, estimular valores nacionais, despertar sentimentos de identificação e pertencimento aos momentos épicos e gloriosos da nação. Construções estéticas que foram e ainda são referenciais de identidade nacional mesmo que apresentem em sua composição formal algumas incongruências que, se analisadas “ao pé da letra” induzem à grandes equívocos históricos, por exemplo, : no momento em que D.Pedro I recebe a carta de Portugal, próximo ao Rio Tamanduateí, em setembro de 1822 não houve “grito”, nem tampouco revoltosos populares, mulheres e crianças acompanhando o monarca naquela fatídica viagem na província de São Paulo.


O que vem sendo questionado sobre as pinturas históricas é o poder que encerram de representação dos acontecimentos históricos, o monumentalismo de heróis em detrimento dos atores coletivos, ou se podem limitar-se à categoria de artefatos e estimular uma visão crítica sobre os fatos pretensamente representados, revelando a genealogia de tais produções, o perfil de seus autores e os projetos de construção de nação a que estão vinculados. Projetos esses que se modificam pois são produtos de períodos políticos distintos.


O Brasil e demais países da América Latina

na construção de símbolos e valores nacionais


Faz parte da nossa cultura recente a preocupação dos museus de criar ferramentas para explicar as origens das grandes pinturas de história, especialmente as que, inseridas como material didático permanente, acompanham a formação das sociedades desde os primeiros anos escolares.


Alguns quadros, como os executados por Victor Meirelles, em “A Batalha dos Guararapes”, de 1875 a 1879, mesmo autor de “A Primeira Missa do Brasil”, pintado nos anos de 1859 a 1861, em Paris; o “O desembarque de Pedro Álvarez Cabral em 1500”, de Oscar Pereira da Silva, quadro que inaugurou século XIX; bem como Pedro Américo, autor do célebre “Independência ou Morte”, finalizado em 1888, “A Batalha do Avahy”, de 1877, “A Libertação dos Escravos”, de 1889, são três dos principais pintores, entre muitos que se dedicaram a registrar os principais eventos históricos fundantes do Brasil, como conflitos, guerras e especialmente o período monárquico. Esses artistas pertenceram a uma geração que se beneficiou do principal legado da Missão Francesa no Brasil (1816-1826) que foram os estudos das pinturas históricas e que almejavam, como homens do seu tempo, construir representações generosas de uma nação heroica e civilizada.


Foram beneficiários de uma tradição artística conhecida desde os chamados pintores viajantes, que circularam por países da América Latina durante o século XVIII registrando as maravilhas do Novo Mundo tais como Rugendas, Eckhault, Skinner, C. Nobel e Jean-Baptiste Debret e que se somaram a tantos outros pintores, verdadeiros cronistas das cenas do cotidiano das incipientes sociedades, costumes e culturas étnicas. Reportaram sua temática a um passado mais longínquo a epopeia da “descoberta” ibérica e aos heróis das independências. Citaria alguns além dos já mencionados: José Augustín Arrieta (mexicano); Andrés de Santa Maria (Colômbia); Cândido Lopez (Paraguai); Pedro Figari (Uruguai); José Maria Espinosa (Colômbia); Pedro José Figueroa (Equador); José Gil de Castro (Peru); Juan Cordeiro (México), Juan Manuel Blanes ( Uruguai) e dezenas de pintores anônimos ( ADES, 1997,ps 7-32).


A fonte matricial da estética no campo da Arte do século XIX,

no Brasil e em países a América Latina,

centrou-se na construção da memória oficial


...e seus artistas eram contratados pela elite do poder, monarquistas, e posteriormente, ex-monarquistas e novos republicanos. Alguns artistas, já possuíam formação acadêmica, igualmente financiada pelos Estados, e eram praticantes dos gêneros mais nobres das Artes.


As semelhanças entre os países mais próximos e as dissemelhanças com os povos europeus e asiáticos, a necessidade de afirmação identitária perante o mundo, pós processo das independências, leva as elites dos países a tomarem para si a tarefa de definirem as especificidades da língua, da cultura, e registrar historicamente os grandes eventos fundadores das nações. Portanto, o compromisso dos artistas latino-americanos era registrar o que lhes parecia ideal como representação dos eventos históricos e não reproduzir exatamente a realidade dos fatos. Como bem enfatizam as historiadoras Maria Ligia Prado e Gabriela Pelegrino em História da América Latina (Ed. Contexto, 2014, p88): “O fundamental era forjar as nações”.


O pintor Pedro Américo, sobre quem falaremos em seguida, trilhou à risca esse modelo. Em sua tela “A Libertação dos Escravos”, iniciada em 1889, o pintor coloca em destaque as deusas gregas e suas vestais concedendo a libertação de homens negros escravizados que se arrastam pelo chão em posição de súplica, de submissão. Mesmo sem finalizar a obra, provavelmente pela República que estava se instalando no país, podemos observar que tanto a concepção da pintura, centrada nas referências do classicismo grego (deusas da liberdade na cena), como a solução formal (homens negros em plano inferior) nada remete ao real, não representando, nem mesmo parcialmente, parte daquele episódio que resultou da luta de centenas de negros libertários e de notórios abolicionistas.


Portanto, foi uma recriação, totalmente teatralizada, típica dos pintores da época, segundo a historiadora Ruth Sprung Tarasantchi (Oscar Pereira da Silva, Oscar Pereira da Silva, do 2006, p71). Alguns artistas, pretendiam com suas pinturas aproximarem-se tanto quanto possível da realidade histórica, beirando um realismo que foi muito criticado e que impunha limitações às soluções formais usadas pelos artistas. O exemplo desse radicalismo, segundo Tarasantchi, teria vindo do espanhol Mendonza, que aconselhava que se estudasse a cena em detalhes, antes mesmo de pintá-la, o que poderia sacrificar a imaginação, a criatividade ou estilo do artista ( Idem, 72).


No caso do Brasil, diferente da Espanha naquele século, o projeto de construção da nação soberana e civilizada iniciou-se com a vinda da família real ao Brasil e com a Missão Francesa e seguiu-se com os demais monarcas, que adoraram a representação simbólica e até alegórica sobre a representação do real. E assim seguiu-se com a maioria dos artistas dedicados/as, à pintura da história, detalhistas ao narrar cenas épicas ou heróis nacionais, absorvidos pelas inspirações de europeus, e exuberantes e imaginativos ao construírem as cenas épicas e pouco atentos ao realismo dos fatos.





No quadro de Oscar Pereira da Silva, “O Desembarque de Pedro Álvarez Cabral em 1500”, produzido por encomenda do Estado de São Paulo para as comemorações do centenário do descobrimento, uma comitiva amigável de indígenas esperava pelo navegante português nas praias do Brasil. O artista segue à risca os modelos de composição das academias europeias e as sugestões do artista espanhol Mendonza. As vestimentas da comitiva de Cabral foram pesquisadas por ele, a geografia espacial seguindo padrões, contudo, o artista interpretou como amigável o clima de recepção, pouco provável, dos indígenas aos novos donos do Brasil. Registros históricos indicam, como bem mencionada a historiadora Tarasantchi, que Oscar Pereira da Silva participou das discussões sobre a composição do quadro em relação à natureza e origem dos indígenas (Idem, 2006,p 87).



Pinturas históricas não revelam conflitos:

reina a harmonia entre os povos originários

e os novos donos da Terra de Santa Cruz



Em “A Primeira Missa do Brasil”, de Victor Meirelles, concluída em 1861, reina a harmonia no primeiro encontro ecumênico dirigido pelo bispo português na Bahia e parece não existirem conflitos diante da invasão portuguesa. A submissão pela fé dos homens brancos é aceita pelos demais com uma aparente tranquilidade. Segundo Coli, A Primeira Missa inspirou-se na obra do francês Horace Vernet “Première Messe du Kabylie”, em 1853, que também marcava a época do colonialismo francês na África do Norte.[3]


Em boa parte dos quadros de cenas históricas pintadas por artistas brasileiros, como as citadas acima, a natureza exótica dos trópicos de que tanto falou Caminha da sua carta ao rei D.Manuel, cria um clima mágico, uma coesão entre os grupos étnicos, ou “raças.


Importante ressaltar o papel do IHGB- Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, parte fundamental do projeto intelectual de construção de uma nação aos moldes europeus e que inspirava e determinava muitas vezes, dado a sua relação próxima com o imperador, o que era bom ou ruim para o Brasil, quais seriam as produções intelectuais que e aproximar o Brasil do seu ideário de civilização. Era tarefa de pintores e escritores deixarem registrados o nascimento das nações além das façanhas épicas de heróis nacionais em conflitos e guerras.


O exemplo da ingerência do IHGB na produção pictórica da época se deu com a obra Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil, de 1834 a 1839, de Jean-Baptiste Debret. Já na França, o artista francês reuniu em três volumes seus desenhos, estudos, pinturas e esboços de um longo trabalho de pesquisa que desenvolveu em várias regiões do Brasil até o ano em que retornou à França, em 1826. Finalizados, Debret enviou os três volumes a D.Pedro II, que antes de serem entregues ao monarca, foram examinados pelo IHGB, órgão responsável por mediar os conteúdos culturais que circulavam pelo país, especialmente os que iam parar nas mãos do monarca. Sob a alegação de que havia imprecisões textuais e incongruências nas representações do Brasil, os volumes II e III foram reprovados e deixaram de circular durante muito tempo nos meios culturais do país. O volume I compôs de imediato a biblioteca real. (Leenhardt, 2013)







Dos vários exemplos e obras já mencionadas “Independência ou Morte”, elaborada por Pedro Américo de Figueiredo e Melo (1843-1905), representa D.Pedro I proclamando a Independência, quadro que consiste no mais imediato referencial pictórico quando se trata do tema. É a tela matricial do Museu Paulista, instituição criada há 130 anos, para abrigar os documentos da Independência e da fundação de São Paulo. Com 7,7 metros de comprimento por 4,15 de altura, o quadro se encontra no salão nobre do Museu e deve receber, nas próximas semanas, milhares de pessoas durante as comemorações do bicentenário.


Pintado em Florença, após 66 anos do ocorrido, a uma distância temporal quilométrica da realidade dos fatos, Meirelles revela uma monumentalidade visual e um imaginário apoteótico sem correspondência com a realidade da época, e que somente há pouco começou a ser reexaminado por historiadores, pesquisadores e museólogos. O quadro foi e ainda é reproduzido à exaustão em inúmeros suportes, especialmente pelas editoras educativas. Já mencionamos anteriormente as razões pelas quais oram relegadas ao ostracismo as pinturas de história e o prejuízo causado ao campo educativo e cultural a visão enviesada do Modernismo. Em consequência desse fato, as análises sobre a importância ou não dessa produção para o entendimento da própria história, dentro de parâmetros mais contemporâneos sobre representatividade, verossimilhanças e construções imagéticas, só começaram a surgir em torno dos anos de 1970, como veremos logo à frente.


Algumas inconsistências na composição do quadro Independência ou Morte têm sido apontadas e revelam posições, escolhas e aderência de Pedro Américo ao projeto de edificação de nação, protagonizado pelo encomendante do quadro, D.Pedro II, dileto filho do monarca-herói da Independência. Vale a pena ressaltá-las: ao invés de robustos cavalos, a comitiva estaria viajando, provavelmente, no lombo de burros, que era mais usual para percorrer trajetos longos; inexistiram populares à beira da estrada dando assistência ao ato; não há indícios históricos de que D.Pedro I estivesse portando espada. O monarca era acompanhado por uma comitiva armada, como era de praxe, embora no quadro, o pintor colocasse somente um membro da guarda nacional acompanhando D.Pedro I e sete civis; viagens longas e cansativas pediam roupas menos suntuosas como apresentadas no quadro com casacos de veludo e corpetes e menos formalidade nas roupas de D.Pedro cujo uniforme era de gala.


Acreditar que o pintor, homem de muitas competências, poeta, cientista, filósofo, não tinha noção da realidade dos fatos e das situações que cercaram tal evento em setembro de 1822 e que não empreendeu consultas basilares, pesquisas em documentos históricos para certificar-se de estabelecer seu campo limite de criatividade, é ingenuidade do simples leitor.


Procura-se entender, nos dias de hoje, o papel que teria a elite cultural paulista que aos moldes do IHGB, disseminou no campo educativo-cultural o que era de seu próprio interesse, dentro de uma perspectiva coletiva, enquanto grupo no poder, e individual.


Que imagem poderia coadunar mais

com a figura do novo Imperador?

Um quadro que o colocasse

no lombo de um simples burrico

ou, como os grandes libertadores

representados - como Napoleão ou Bolívar-

em um pomposo cavalo?


As aparentes incongruências são constructo de uma nação com seus heróis, projetadas por intelectuais ligados à monarquia e seus aliados subsequentes, pós instalação da República, como Affonso Taunay, criador do IHG de São Paulo. Coube a ele, como primeiro diretor do Museu Paulista, de 1917 a 1945, a definição do acervo principal do Museu e a disseminação das imagens históricas nos livros escolares.


Hoje, comemorando os 200 anos de Independência do Brasil e mais de 100 anos dos principais museus históricos brasileiros, como transformar o paradigma que sempre pautou a compreensão das pinturas de história, como “ janelas para o passado” para algo novo, que garanta uma recepção mais compartilhada, menos engessada formalmente e mais crítica em relação à temática que se quer representar?


Os museus há muito têm procurado dinamizar as ações curatoriais, criando recursos didáticos para provocar uma recepção compartilhada que permita o entendimento do objeto artístico em todas as suas dimensões. Em entrevista à revista Cores Primárias, em maio de 2007, o historiador Paulo Garcez Marins, um dos curadores do Museu Paulista, demonstrando uma preocupação antecipada do que seria o novo museu, afirmou que essa é uma das questões mais difíceis de resolver uma vez que durante décadas os livros didático trabalharam as pinturas histórias como realidade histórica:


[...] essas pinturas eram e ainda são tomadas na maior parte das vezes como “janelas para o passado”, nunca como representações que um determinado momento produziu sobre o passado. O que quero dizer é que elas são reproduzidas nos livros escolares não como uma tela de fins do século 19, mas como uma imagem “verdadeira” do século 17, como é o caso clássico referente ao uso de reproduções de nossas telas e esculturas que representam bandeirantes. Isso é um problema que, precisamos frisar, o próprio Museu Paulista gerou. Affonso Taunay, nosso diretor entre 1917 e 1945, acreditava, como tantos outros diretores de museus históricos no Ocidente, que pinturas e esculturas, se bem orientadas por historiadores, podiam ser considerados retratos fiéis ou pelo menos pertinentes do passado. Além disso, ele tinha uma relação estreita com esse mercado editorial, era um autor de livros de história. Os materiais didáticos já a partir da década de 20 tinham muitas ilustrações e o acervo do Museu Paulista era uma das maiores referências para essas ilustrações. Hoje não aceitamos mais essa compreensão de que representações tenham a possibilidade de retratar o passado. Aquilo que era uma virtude tornou-se um problema, que virou contra a própria instituição.


Os museus são peças-chave para modificar esse paradigma, mas e as editoras didáticas que continuam publicando as mesmas imagens apontando erros e acertos dos pintores como estes fossem historiadores. A essa questão assim explica Garcez:


"Hoje, não nos comportamos mais como um museu ilustrativo do passado, que narra a história a partir de imagens fetichizadas; procuramos trabalhar os artefatos a partir de problemas que estimulam a interpretação histórica, como suporte de questionamentos e de visões que são sempre subjetivas. E já há alguns anos estamos produzindo exposições e instrumentos educativos que trabalham a partir dessa reorientação".


Desconstruir a equivocada noção de pintura histórica como memória do passado, contrapor-se aos projetos oficialescos de grandiosidade e eloquência é uma das tarefas que se impõem não somente aos museus. Assim analisa o Garcez Marins:


"Realizar essa tarefa significa retirar o artefato de uma condição de objeto histórico, portanto, de um transmissor de uma experiência passada para a condição de um documento histórico, isto é, como suporte para questionamento para reflexão científica. Isto é bastante difícil de se realizar, implica em, como disse, desconstruir uma trajetória da própria instituição. Como também dirigir-se a um público que muitas vezes espera do museu uma postura consagrativa, uma postura onde os artefatos são colocados como suporte de uma memória oficial. Aliás, o museu histórico deve tematizar até isso como um problema histórico". (Marins, 2007)


E finaliza enfatizando a importância da transformação dos museus de história para a formação da cidadania:


"A possibilidade do museu ser um espaço de cidadania implica em fazer de si um espaço de capacitação do visitante para a crítica, não para a celebração. Todos os grandes museus ligados à memória oficial estão nessa encruzilhada. O Museu Paulista procura estabelecer, como disse, uma postura crítica em relação a si próprio. O Museu Imperial de Petrópolis e o Museu da República estão numa chave de problemas semelhante, mas, é claro, enfrentar criticamente o passado da instituição é uma decisão que os curadores devem tomar. Retirar seus acervos de uma condição de imanência. Esses artefatos não são verdades, ou portadores de verdades. Devem sugerir perguntas, questões. [...] Uma visita a um museu histórico deve ser necessariamente provocativa, deve ser fomentadora de uma postura crítica e não de uma postura laudatória [...]". [4] (Marins, 2007)


O fato do Museu Paulista, ou Museu do Ipiranga, ter sido criado, inicialmente, para abrigar a memória oficial da Independência, pela proximidade do acontecido, bem como para ser o depositário dos documentos sobre a fundação de São Paulo, traz à tona uma antiga (e recente) disputa entre São Paulo e Rio de Janeiro pelo protagonismo de tal evento político, aliás, o mais significativo evento da nação, a sua Independência. [5] Houve, de fato, um deslocamento do ato da Independência do Rio de Janeiro, espaço real de ebulição do movimento que antecede à proclamação e era sede do reinado para São Paulo, para as proximidades de um desconhecido córrego Ipiranga.


Esse fato só impulsiona pesquisadores a empreender a tarefa necessária de voltarem suas análises críticas sobre a gênese do movimento de libertação do Brasil, que por mais contraditório que seja, teve início com a vinda da família real ao Brasil em 1808 , antes até, com as lutas políticas nas províncias (Conjuração Baiana, em 1798) e que envolveu colonos e colonizados: a elite ligada à monarquia e seus opositores, intelectuais e políticos liberais, a Igreja, a Maçonaria, o Exército, bem como as forças populares que se aglutinaram em momentos distintos – homens e mulheres, as populações negra alforriada e indígena.


Trabalhar com a produção pictórica que se encontra em museus com visão crítica e recorrer a uma historiografia esclarecedora sobre os principais fatos ocorridos são passos significativos para a desconstrução de um imaginário inspirado na oficialidade do herói nacional. Imaginário que saltam das telas e que deixaram de lado as lutas sociais e políticas protagonizados por um coletivo de homens e mulheres que ficaram além da moldura da célebre pintura de Pedro Américo.


Notas:


[1] Museu Histórico Nacional do Rio de Janeiro, MHN (1922); Museu da Inconfidência. Minas Gerais, 1830; Museu Imperial, Petrópolis, RJ, 1845-fundação 1940; Museu Julio de Castilhos, Rio Grande do Sul,1903; Museu Paulista, mais conhecido como Museu do Ipiranga, São Paulo, 1840, Museu Nacional de Belas Artes, cujo acervo histórico é um dos mais significantes, criado em 1937, entre outros.

[2] A hierarquia de gênero artístico priorizava (do maior grau para o menor grau de importância): a pintura histórica, pintura das cenas cotidianas ou em família, retratos, paisagens e naturezas-mortas.


[3] IMS/Site ArtePensamento: https://artepensamento.ims.com.br/item/primeira-missa-e-invencao-da-descoberta/. Acesso 1998. Artigo: A Primeira Missa e Invenção da Descoberta.


[5] Disputa recente, pois as discussões sobre o centenário da Semana de Arte Moderna de 1922, ocorrido em São Paulo, retomaram antigas e infundadas disputas entre Rio de Janeiro e São Paulo (ler matéria do Ñanduti sobre o modernismo brasileiro publicada em 8 de fevereiro de 2022) https://www.nanduti.com.br/post/modernismo-brasileiro-e-latino-americano-encontros-e-desencontros-entre-v%C3%A1rios-mundos.



Referências bibliográficas


COLI, Jorge. Como Estudar a Arte Brasileira do século XIX. São Paulo, Editora SENAC, https://www.scielo.br/j/anaismp/a/yZJf5tfZcR9WxqvVhdCSCKh/?format=pdf&lang=pt 2004.Coleção Livre Pensar.


Cores Primárias. Jornalismo especializado em História das Artes Visuais. Entrevista concedida pelo historiador Paulo C.G.Marins à Revista digital em maio de 2007. Série Curadores.http://www.coresprimarias.com.br/ed_9/entrevista_paulo_p.php. Acesso agosto de 2022.


LEENHARDT, Jacques. Jean-Baptiste Debret: um olhar francês sobre os primórdios do Império do Brasil. Scielo, Sociol. Antropol. 3 (6). Jul-Dec 2013 ) https://doi.org/10.1590/2238-38752013v367 .


MARINS, P.C.G. Introdução Dossiê/Museus. Pintura Histórica no Museu Paulista. SCIELO, 2019.


MOTA, Carlos Guilherme; LOPES adriana. História do Brasil: uma interpretação. São Paulo. Editora 34. 2015.


PRADO, Maria Ligia; PELEGRINO, Gabriela. História da América Latina. São Paulo. Ed. Contexto.2014.



Curiosidade pelo Novo Museu do Ipiranga leva milhares de pessoas a caminhar pelos corredores da sua própria história

Margarida Nepomuceno

Jornalista 16 276

Edição: Mayra Coan Lago

Ñanduti


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