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Foto do escritorMargarida Nepomuceno

A mesma história nunca é a mesma As lições da obra de Luiz Zerbini, no MASP

Atualizado: 4 de jun. de 2022



Luiz Zerbini, A Primeira missa, 2014, Acrílica sobre tela, 200 x 300 cm, coleção do artista, Rio de Janeiro, foto Pat Kilgore



Escute a matéria em nosso canal do youtube: https://www.youtube.com/watch?v=O-k3qpZ5E3M


A mostra que se encontra no MASP- Museu de Arte de São Paulo até o dia 5 de junho, denominada A mesma história nunca é a mesma, do artista paulista Luiz Zerbini nos oferece uma nova interpretação da pintura histórica, como gênero de pintura. Mais que isso, nos leva a fazer uma análise crítica do que costumamos definir como “a verdade da pintura histórica”. A exposição é composta por 50 trabalhos, muitos desenhos e pinturas de diferentes gêneros, além de monotipias com motivos botânicos, mas centra-se, especialmente, nas pinturas de maior dimensão que recontam passagens da história e da cultura brasileiras sob a perspectiva do artista. A principal delas, A Primeira Missa, criada em 2014 pelo artista e exposta pela primeira vez no Museu de Arte de São Paulo. Ao lado dessa obra, outras, com temas sócio-históricos também recontam passagens conflituosas que marcaram o século XIX no Brasil, caso da Guerra dos Canudos, ocorrida de 1896 a 1897, e acontecimentos mais recentes, como o Massacre dos indígenas Ianomamis, em Haximu, pelos garimpeiros, em 1993. Há telas que apresentam sob novas perspectivas o garimpo ilegal no Brasil e a representação dos ciclos na agricultura voltados para a monocultura em terras brasileiras. Parece não interessar ao artista o refazer linear de acontecimentos, ou conferir novas interpretações ao que já foi dito ou ocorrido, mas decompor, segmentar, clivar partes daqueles acontecimentos para entender e valorizar detalhes empastelados ou amontoados dentro da pintura histórica tradicional. Essa é sua maneira de recontar a história, mesmo as histórias recentes e mostrar que a mesma história nunca é a mesma....história.


Luiz Zerbini, Massacre de Haximu, 2020, Acrílica sobre tela, 280 x 391 cm, Acervo MASP, foto: Pat Kilgore (detalhe)



Ou seja, ela pode ser contada ou representada de diferentes perspectivas e por diferentes atores sociais e políticos que desempenham o papel do historiador contemporâneo. Um historiador-artista que utiliza sua criatividade e imaginação, lança mão de culturas híbridas (afro-indígenas e sertanista em Canudos não se rendeu) para criar imagens pictóricas que recontam e reinterpretam a história.


Luiz Zerbini. Canudos não se rendeu. 2022. Acervo do artista.



A imaginação, porém, corre solta por entre documentos que contribuem para a construção do vocabulário do artista. No verso das telas-mural Luiz Zerbini registra os estudos para a elaboração das pinturas: pesquisa em recortes de jornais, fotografias de acervos variados (Marc Ferrez em Paisagem Inútil e Walter Garbe em Primeira Missa), depoimentos (do líder indígena Davi Kopenawa, em Massacre de Haximu), entre outros materiais, inclusive suas próprias produções mais antigas que se juntaram às novas paisagens. Sua expertise em trabalhos com temas botânicos, em monotipia- uma técnica de impressão-, ou em pintura e desenhos, lhe valeu uma importante complementaridade na obra dos ciclos econômicos ligados à monocultura e ao trabalho escravo: café, cacau, cana-de-açúcar e o algodão.


Café, algodão, cana-de-açucar e cacau. Ciclos da monocultura da agricultura brasileira. Um modelo agroexportador-escravista que não deu certo.

Luiz Zerbini. Ciclos da monocultura brasileira.2022 Foto Isabella Matheus.




Monotipias para o processo de pintura do quadro Ciclo de monocultura brasileira. Luiz Zerbini. Foto de Izabella Matheus.


São trabalhos que se complementam, nesse caso, a pintura exuberante do conjunto de plantas, flores e frutos que representam as culturas econômicas e as gravuras em monotipias, ao lado ou no verso da tela, cujas matrizes são as próprias folhas da cultura em questão.


Luiz Zerbini, Massacre de Haximu, 2020, Acrílica sobre tela, 280 x 391 cm, Acervo MASP, foto Pat Kilgore (detalhe)


Com essa obra, o artista questiona a política econômica do Brasil voltada para a exportação e fundada, basicamente, na mão de obra escravizada. “Um modelo que não deu certo!”, como diria o próprio Zerbini em entrevista para o site oficial do MASP.



A pintura Histórica no Brasil e na América Latina


Centrada excessivamente nos protagonistas de importantes feitos nacionais, quase sempre ufanistas, laudatórias, as pinturas históricas tais como foram legadas pelos antigos modelos acadêmicos, eram o mais importante gênero artístico destinado a grandes pintores oficiais. Hierarquicamente, representavam entre os vários gêneros as paisagens, os retratos, as cenas do cotidiano e os costumes o que havia de mais nobre nas academias.


Construção do vocabulário para a pintura da A Primeira Missa. Luiz Zerbini, 2014. Foto Isabella Matheus.



Simbolizavam o discurso oficial sobre acontecimentos relevantes tais como os embates bélicos de conquistas de territórios ou ações de exaltação dos nacionalismos com o intuito de criar ou de definir determinadas imagens de heróis e seus feitos. Muitas vezes as imagens históricas, estampadas insistentemente nos livros didáticos, impregnaram a nossa memória de tal maneira que relegam a planos secundários as próprias realidades que as geraram. É assim com “A Primeira Missa do Brasil”, pintada por Victor Meirelles em 1860; ou com “O desembarque de Pedro Álvarez Cabral em Porto Seguro em 1500”, de Oscar Pereira da Silva, obra finalizada em 1900; ou antes ainda “A sagração e coroação de D.Pedro I” por Jean-Baptiste Debret, em 1824, artista da Missão Francesa, responsável pelo ensino da pintura histórica no Brasil, como veremos à frente.


Se formos fazer alguns paralelos entre as obras homônimas “A primeira missa do Brasil” de Victor Meirelles (1860) e de Luiz Zerbini (2014) teríamos que considerar os papéis que cada pintura representa para o seu tempo. Reduzir as suas diferenças na visualidade apenas, seria quase uma evidência primária. As duas foram elaboradas à distância dos fatos históricos e ambas objetivaram reconstruir uma narrativa histórica: a primeira, de 1860, pretendeu mostrar uma empresa vitoriosa de Conquista, sedimentada na aliança entre Igreja e Estado comemorada com o ato simbólico da celebração da missa. Foi a sagração dessa aliança pela vitória da Igreja Católica por mais fiéis, por um lado, e pelo expansionismo ultramarino do Estado Ibérico em um momento particularmente atribulado da Contrarreforma. Victor |Meirelles pintou esse quadro em Paris, onde se encontrava como bolsista na Academia de Belas Artes. Reafirmar a origem nobre da formação do Estado Nacional, mostrar a harmonia entre invasores, Igreja e invadidos, que aparentavam estar acomodados naquele ato simbólico religioso, constituiu o feito principal do artista. O ato da conquista, a invasão e a violência que se seguiram a isso, foram transformadas, no imaginário popular, durante séculos, no “encontro maravilhoso de dois Mundos”. É isso que se aprende, desde as gerações passadas, nos bancos de escolas. Os desdobramentos dessas imagens equivocadamente harmoniosas e propositalmente construídas, já são conhecidos: a naturalização da violência contra a cultura ancestral indígena, a exploração desmedida de riquezas naturais, a colonização não somente do espaço físico, mas de todas as empreitadas seguintes, a imposição de modelos eurocêntricos para o desenvolvimento e para a formação das nacionalidades e sobretudo, o massacre e a escravização de indígenas e africanos.


A Primeira Missa por Luiz Zerbini (2014).




Victor Meirelles, A Primeira Missa do Brasil (1859-1861)


Luiz Zerbini também quer recontar uma história, mas pela via contrária a de Victor Meirelles. Os protagonistas continuam os mesmos, os portugueses e espanhóis na América Latina, mesmo porque não se pode subverter os fatos históricos e a empresa colonial foi capitaneada pelos povos ibéricos, mas isso não os transforma em heróis, dignos da centralidade visual. Na tela de Zerbini, uma indígena exibe os seios em vermelho, ladeada por outros em uma representação que revela a violência sofrida. A cruz, símbolo máximo do cristianismo, dá lugar a figura de um nobre religioso cuja cabeça está envolta por uma enorme cobra, detalhe esse recuperado da fotografia de Nuno Gonçalves do Infante D Henrique. A perspectiva está muito longe de ser a neoclássica, de Victor Meirelles. Todos têm a mesma importância na cena e o clima não é de harmonia, pelo contrário, a ideia imperial da primeira versão da Missa procurava expressar a harmonia e o controle sobre as populações indígenas, mas a perspectiva do artista contemporâneo não substitui à antiga narrativa por uma nova, mas provoca o público a questionar o que aparentemente é imutável, desconstruir um imaginário encomendado e pensar com mais profundidade a importância daquele fato histórico e seu significado até os nossos dias.



Pintura Histórica: janela para o tempo


No Brasil, a Academia Imperial de Belas Artes, fundada em 1826 por D. João VI, foi portadora da vontade imperial que buscava criar uma representação da Nação brasileira e criar uma memória oficial. O personagem mais notório desse momento era o pintor Jean-Batiste Debret, considerado durante um determinado período do reinado de D.Pedro I, o pintor oficial da corte.



Jean-Batiste Debret. A Sagração de D.Pedro I, 1828


Para Julio Bandeira, organizador da última publicação brasileira sobre Debret cadernos de Viagem, as gravuras e desenhos do artista francês são verdadeiras janelas no tempo. Dos pintores desse início fundante da Academia Imperial, foi o que mais produziu. Nos três volumes de Viagem Pitoresca, Debret apesar de ser um pintor do gênero Histórico, da Escola Neoclássica, preocupou-se fundamentalmente em fazer o registro etnográfico da população, de seus hábitos, costumes, religião, talvez pela sua própria condição de convidado da corte.

Faz um detalhado estudo sobre os utensílios indígenas, utilizados em ocasiões diferentes de suas vidas como também dos negros, suas máscaras, suas roupas, hábitos, suas ocupações, além de registros de paisagens e espécimes botânicas. Pintou um número reduzidos de quadros para a corte, mas os principais dessa época.


Além de Debret, muitos outros pintores, identificados na iconografia latino-americana como pintores viajantes como Joseph Skinner, que publicou álbum com os registros do Peru, A Minerva do Peru, em 1805, povos indígenas com trajes da mitologia européia, e C. Nebel que em Viagem pitoresca e arqueológica , de 1836, também retratam a população indígena em seus costumes , quase sempre com vestimentas europeias. O mexicano Arrieta também reproduziu os costumes das populações indígenas e negras, no México.



C.Nebel ( México) Rancheros, 1836 ( Pintores viajantes)


No geral, para as academias que estavam surgindo em muitos países da América Latina, não somente no Brasil, apresentava-se a seguinte pergunta para os artistas e professores estrangeiros: como querer transplantar gêneros das academias europeias, particularmente da França e Itália, quando a própria Europa estava começando a rever os seus modelos, questionar as academias? E sobretudo, para uma clientela, como os artistas e público latino-americanos, desacostumados a esses mesmos modelos?


As condições específicas nos países latino-americanos dificultavam a transposição mecânica desses modelos: o nu, por exemplo, era inaceitável em alguns lugares. Alguns pintavam os nus e tinham que “vesti-los” com novas pinturas, lembrando os casos em que o papa italiano Júlio II ordenou que Michelângelo vestisse os apóstolos e anjos em suas pinturas. O artista argentino Prollidiano Puyerrredon pintava escondido, seus modelos nus. Na Venezuela, até 1904, esse gênero era proibitivo na Academia.


Um gênero, entretanto, assentou profundas raízes na prática das academias da América Latina que foi a pintura histórica. Essa, reforçava a predileção por grandes temas, e a partir da segunda metade do século XIX, despertou profundo interesse. Os temas históricos, muito importados também da história europeia ocidental, vão dando lugar, lentamente, aos temas históricos regionais, locais, latino-americanos.



Pedro Américo. A Batalha do Avaí. 1877 (MNBA)


A pintura Histórica foi o gênero mais usual nas academias da América Latina uma vez que artistas estavam envolvidos com os projetos das elites de construir uma imagem positiva e “civilizada” das novas repúblicas. No Brasil, a criação da Academia Imperial de Belas Artes, depois Academia de Belas Artes (em 1926) seguiu tecnicamente o modelo europeu contribuindo para reforçar as diferenças abismais entre cultura erudita e cultura popular. No Brasil, a academia ao lado do IHGB instituto Histórico e Geográfico Brasileiro fundado em 1838, foi responsável pela criação de uma memória oficial, tanto na pintura histórica como no gênero paisagem, criando no imaginário estrangeiro a ideia do exotismo, das imensas florestas tropicais, e da população originárias, selvagem e indóceis. Os pintores queriam deixar registrados o nascimento e a fundação do Novo Mundo, além dos conflitos e guerras que ocorriam pela disputa de territórios. Temos elencado: Oscar Pereira da Silva (o Desembarque de Pedro Álvares Cabral), 1889, Victor Meirelles, A Primeira Missa do Brasil, 1860, ambos já citados acima, Pedro Américo, A Batalha do Avaí, 1887, e em países vizinhos: Pedro Lira, a Fundação da Santiago, em 1889, o argentino Candido Lopez, o uruguaio Juan Manoel Blanes, sobre a Guerra do Paraguai, ou Guerra da Tríplice Aliança e dezenas de outros artistas.



Pedro Lira (Chile). A Fundação de Santiago, 1889



As pinturas históricas foram verdadeiras crônicas e em alguns lugares, os únicos documentos deixados para o registro da memória e devem ser lidas à luz das expectativas das elites que estavam na base da construção dos Estados Nacionais.




Serviço:

Luiz Zerbini: A Mesma História nunca é a mesma

MASP- Museu de Arte de São Paulo

Fotos: assessoria de imprensa do MASP

Até 5 de junho de 2022

Compra de ingressos pela internet

Matéria: Margarida Nepomuceno (Mtb 16 276)

Edição: Mayra Coan Lago

Imagens: Assessoria de Imprensa do MASP




Luiz Zerbini. A Primeira Missa do Brasil, 2014 (detalhe)



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