Ao longo de toda a década de 1990, os países da América Latina experimentaram, em maior ou menor grau, um processo de adesão à globalização financeira, o que se traduzia em reestruturação do Estado, abertura comercial, privatizações e na adoção de rigorosas medidas de controle inflacionário. Muitas destas medidas agudizaram a crônica dependência da região com respeito às divisas, o que a levou a socorrer-se junto ao Fundo Monetário Internacional (FMI) como forma de honrar seus compromissos junto aos investidores estrangeiros atraídos pelas altas taxas de juros então por nós praticadas. Os pacotes de resgate do FMI, no entanto, vinham acompanhados de uma série de recomendações e de condicionalidades, as quais levavam a uma nova onda de desregulações, flexibilizações e privatizações.
Já no final desta mesma década, no entanto, os impactos perversos das medidas recomendadas pelo FMI não podiam ser ignorados. A América Latina registrava naquele momento um aumento vertiginoso do desemprego e da precarização laboral, assim como do sucateamento dos serviços públicos essenciais. Ademais, as políticas sociais focalizadas se mostravam incapazes de conter o forte crescimento dos índices de pobreza e de indigência. A crise do neoliberalismo instalada na região levou o FMI a experimentar uma profunda crise de credibilidade, de modo que a atuação do organismo passou a ser fortemente questionada em toda a periferia do capitalismo.
Em 2003, a América Latina registrou um nível de endividamento com o FMI nunca antes visto na história da região: 47,8 bilhões de dólares, o que equivalia a 10,5% das exportações regionais naquele ano. Apenas três anos depois, no entanto, o forte crescimento da demanda internacional pelas commodities latino-americanas permitiu uma reversão deste cenário, de modo que os déficits deram lugar a significativos superávits fiscais. Neste período, a região reduziu a sua dívida com o Fundo para 744 milhões de dólares, o que representava menos de 0,1% das exportações de 2006 (NEMIÑA & LARRALDE, 2020).
Por anos, pensava-se que a influência e a tutela exercidas pelo FMI sobre a América Latina haviam ficado no passado. No entanto, os impactos produzidos pela crise financeira de 2008 sobre a economia global e a reorientação político-ideológica que se observou na América Latina a partir de 2012 reconduziram este organismo internacional à centralidade dos debates políticos e econômicos na região. Ainda como lembram Nemiña e Larralde (idem), o FMI não apenas manteve a função de avaliador das políticas macroeconômicas dos países latino-americanos, como passou, ainda, a realizar a revisão periódica bilateral do setor financeiro de seus membros, a análise do risco de contágio nas economias de maiores dimensões e complexidade e, principalmente, a difundir normas consideradas pelo organismo como as melhores práticas econômicas e financeiras. Em especial, o FMI recuperou sua posição de principal credor de economias em crise.
Na América Latina, o caso mais emblemático de relacionamento com o FMI é o da Argentina. Este país, que se encontra sob a influência do Fundo desde 1956 e que havia se tornado o símbolo da crise social provocada pelas políticas de ajuste fiscal promovidas por esta instituição, pagou em 2006, e de maneira integral, a sua dívida de 9,8 bilhões de dólares, cujo vencimento estava previsto apenas para 2008. Esperava-se, com isso, garantir a preservação da autonomia do país, a recuperação do crescimento econômico e o fim do sofrimento humano que os ajustes fiscais vinham provocando.
Em 2016, a chegada de Maurício Macri (2015-2019) à presidência da Argentina produziu um nível de entendimento deste país com o FMI que não se via desde antes da chegada do kirchnerismo ao poder, em 2003. A interpretação do FMI era a de que o governo de Cristina Fernández de Kirchner (2007-2015) havia levado a economia argentina ao esgotamento em razão de uma série de políticas macroeconômicas expansionistas, algo que se tornara insustentável quando as exportações despencaram, a partir de 2012. Como resultado, o país amargava um câmbio excessivamente valorizado, inflação elevada, diminuição das reservas em dólar e, a partir de 2015, somou-se a tudo isso uma recessão. Tais desequilíbrios consistiam, segundo o FMI, em uma “herança pesada” deixada pelos governos kirchneristas a Macri (NEMIÑA, 2018).
Ainda que o FMI reconhecesse algumas vulnerabilidades do governo Macri e da política batizada de gradualismo, como a elevada taxa de juros e o crescimento da dívida pública e da inflação, a instituição enaltecia os esforços macristas de promover uma série de reformas, que incluíam a reforma trabalhista e fiscal, a remoção dos controles de capital, a negociação com os credores dos chamados “títulos abutres” e a revisão das tarifas de serviços essenciais.
As projeções econômicas realizadas pelo Fundo em 2017 (NEMIÑA, 2018) indicavam a expectativa de retomada do crescimento econômico nos anos seguintes, assim como da redução da pressão inflacionária. No entanto, contrariando tais expectativas, a expressiva desvalorização do peso argentino levou o país a uma nova recessão, desta vez ainda mais acentuada em razão do aumento do número de pobres, de desempregados e de precarizados que se registrava a cada novo trimestre.
Foi neste cenário de colapso econômico que, em maio de 2018, a Argentina voltou a bater às portas do FMI em busca de ajuda. O socorro veio em forma de um pacote de resgate, o programa Stand By, de 50 bilhões de dólares, que foi anunciado em junho do mesmo ano. A decisão pela concessão do maior empréstimo da história do FMI a uma economia extremamente fragilizada e que sofria de uma severa fuga de capitais foi, evidentemente, política e contou com amplo apoio do então presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. Acreditava-se que o empréstimo daria a Maurício Macri o fôlego que necessitava para recuperar a sua popularidade e, assim, evitar o retorno do kirchnerismo nas eleições presidenciais que ocorreriam no ano seguinte.
Com respeito ao programa Stand By, entre os pontos principais estavam as metas de redução do déficit primário a 1,3% já em 2019 e de alcançar o equilíbrio primário em 2020. Da mesma forma, deveria ser realizada uma reforma que garantisse autonomia ao Banco Central, de forma a dotá-lo de autoridade para definir metas de inflação, bloquear transferências do mesmo ao Tesouro e de sanear a folha de balanço do Banco Central através da recompra de letras intransferíveis em poder do mesmo e da redução do estoque de Letras do Banco Central (LEBAC) (ARGENTINA, 2018).
Já no final de agosto de 2018, a economia argentina seguia dando sinais de desequilíbrios dos mais profundos. Em um intenso processo de fuga de divisas, o peso argentino chegou a perder 15% de seu valor em um único dia, acumulando uma desvalorização de 104% neste mesmo ano, algo que não era visto desde o fim da política de convertibilidade, ocorrido em 2002. De fato, a sobrevalorização do dólar em comparação com a moeda argentina alcançou, ao longo de todo o governo Macri, incríveis 539%, apesar das muitas intervenções erráticas feitas pelo Banco Central, que implicaram na venda de uma média de 300 milhões de dólares ao dia apenas entre 11 de agosto de 2019 e 30 de agosto do mesmo ano (ORGAZ, 2019).
Diante de tal cenário, o governo Macri tomou duas decisões das mais controversas: primeiro, anunciou que retomaria a política do controle de câmbio, medida que restringia a compra de dólares por parte das empresas adotada pelo governo de Cristina Kirchner e que havia sido alvo de duras críticas por parte de Macri. Em seguida, em setembro de 2018, Macri anunciou que havia renegociado o acordo com o FMI, ampliando o seu financiamento em mais 7 bilhões de dólares – o que totalizava 57 bilhões de dólares – e aprofundando as condicionalidades impostas pela instituição internacional. Entre os novos compromissos adquiridos pela Argentina com o Fundo, estavam a redução dos Ministérios da Saúde e do Trabalho ao status de secretarias, além de novas metas de redução do déficit fiscal primário. Ademais, a tutela do Fundo sobre a política macroeconômica da Argentina se ampliaria, uma vez que a instituição internacional passaria a contar com uma representação permanente junto ao Banco Central do país.
É importante destacar que o Stand By firmado por Macri se diferencia, em alguma medida, de acordos anteriores com o FMI por incluir compromissos relacionados às políticas sociais e de gênero. Uma das condições previstas para a concessão do empréstimo foi a destinação de um mínimo de 1,3% do PIB para gasto social, o que permitiria a manutenção dos programas de transferência de renda e, eventualmente, a expansão dos mesmos por meio de uma salvaguarda de 0,2% do PIB destinada ao gasto social adicional. Ademais, definiu-se que um conjunto de indicadores sociais seria monitorado durante as revisões periódicas, de maneira a identificar a necessidade de novas medidas de proteção aos mais vulneráveis, em especial mulheres e crianças. No entanto, estes compromissos se mostraram insuficientes em seu esforço de neutralizar os impactos deletérios das medidas de caráter fiscal e monetário. Macri, que havia sido eleito com a promessa de “pobreza zero”, entregou ao seu sucessor, o peronista Alberto Fernández, um país com, 40,8% de sua população abaixo da linha da pobreza – 10% a mais do que havia no final do mandato de Cristina Kirchner (JUEGUEN, 2019).
Uma vez confirmada a vitória eleitoral de Alberto Fernández no pleito de 2019, o grau de complexidade que as relações com o FMI passaram a ter se tornou imediatamente evidente. Enquanto o Fundo se preocupava com a manutenção das políticas de “viabilidade fiscal”, consideradas fundamentais para que se pudesse cumprir com o pagamento dos mais de 44 bilhões de dólares até então desembolsados pelo organismo, Fernández afirmava que não adotaria novos ajustes fiscais e que o acordo com o FMI só poderia ser honrado através da implantação de um plano econômico sustentável.
Já se sabia que os anos 2022 e 2023 seriam os mais difíceis para o governo de Alberto Fernández, uma vez que a maior parte dos pagamentos do montante da dívida e dos juros deveria ser feita neste período. A dívida com o FMI, considerada impagável por muitos atores políticos da Argentina, se tornou o principal ponto de discórdia no interior do governo: enquanto Fernández e seus aliados defendiam a abertura de negociações com o Fundo objetivando a revisão dos prazos, o grupo da vice-presidente Cristina Kirchner afirmava que a própria concessão do empréstimo ao governo Macri havia violado os estatutos do FMI, uma vez que o dinheiro teria sido usado para financiar a fuga de capitais.
Contrariando a ala kirchnerista do governo, Alberto Fernández anunciou, em fevereiro de 2020, o início das negociações com os credores da dívida externa argentina, começando pelos atores privados, a quem o país devia cerca de 65 bilhões de dólares. Apenas em agosto do mesmo ano as negociações alcançaram um entendimento: o governo argentino pagaria 54,8 dólares por cada 100 dólares devidos. Ao mesmo tempo, e à medida em que os impactos da pandemia de coronavírus golpeavam uma economia argentina já muito fragilizada por dois anos seguidos de recessão, o governo peronista anunciou também o início das negociações com o FMI.
As negociações com o FMI visando a reestruturação da dívida pouco progrediram ao longo de todo o ano de 2021. A demanda argentina era por uma extensão do prazo de pagamento dos valores desembolsados para mais 20 anos e a redução dos juros para 1% ao ano (o acordo original prevê juros que variam entre 1,9% e 4,9% anuais). O Fundo, por sua vez, acenava com a possibilidade de converter o Stand By, que é um empréstimo de curto prazo e com pagamento normalmente previsto em três anos, em um Extended Fund Facility, que pode ser pago em até 10 anos. No entanto, tal extensão de prazo viria necessariamente acompanhada de novas exigências envolvendo ajustes fiscais e reformas estruturais que, segundo o governo Fernández, impediria a retomada do crescimento sustentável da economia argentina e, portanto, dificultaria o próprio pagamento da dívida.
Foi apenas recentemente que este impasse chegou ao fim. Em 28 de janeiro de 2022, o governo argentino e o FMI anunciaram que finalmente haviam alcançado um acordo considerado razoável por ambas as partes. Trata-se, por tanto, de um reconhecimento por parte do Fundo de que os prazos definidos em 2018 eram impossíveis de cumprir, uma vez que consistiam no pagamento de 5,1 bilhões de dólares em 2021, 19,1 bilhões de dólares em 2022, outros 19,3 bilhões de dólares em 2023 e 4,9 bilhões de dólares em 2024. Dentro do novo acordo, ficou definido que o FMI devolverá à Argentina o valor pago em 2021 e que os pagamentos serão reiniciados dentro de quatro anos e meio. Em contrapartida, o país deverá reduzir o déficit fiscal primário para 2,5% em 2022 (a Argentina registrou 3% em 2021), para 1,9% em 2023 e para 0,9% do PIB em 2024. Ao mesmo tempo, o governo de Alberto Fernández também se comprometeu a reduzir a assistência monetária do Banco Central ao Tesouro, que havia alcançado os 7% do PIB em 2020, para próximo a zero em 2024.
Resta destacar que o acordo realizado junto ao FMI ainda deve ser submetido à aprovação do legislativo argentino. A oposição, à princípio, tem afirmado ver como positivo o entendimento alcançado – o que não poderia ser diferente, uma vez que a coalizão Juntos por el Cambio, de Maurício Macri, é a principal responsável pela posição vulnerável em que a Argentina se encontra atualmente. No entanto, as dificuldades podem surgir por parte da ala kirchnerista dentro do Partido Justicialista, uma vez que esta ainda apresenta resistências ao acordo e nele vê o risco de novas exigências de ajustes fiscais no futuro. Sintomático disso foi a renúncia, na segunda-feira (31), por parte de Máximo Kirchner, deputado e filho dos ex-presidentes Néstor e Cristina Kirchner, de seu cargo como presidente da coalizão Frente de Todos na Câmara dos Deputados. Ele afirmou, em comunicado, que a decisão se devia a sua oposição à estratégia utilizada pelo governo e aos resultados obtidos pela negociação com o FMI.
Assim, fica evidente que, ainda que o FMI de hoje não seja a mesma organização inflexível e ortodoxa dos anos 1990, continua sendo verdade que a sua atuação junto aos países da América Latina – e em especial junto à Argentina – em muito pouco ou quase nada tem contribuído para que a região alcance o desenvolvimento ou para que se preserve a sua estabilidade política. Ao contrário, o pagamento do serviço da dívida drena importantes recursos de economias já tão fortemente golpeadas pelas instabilidades da economia internacional. No caso argentino, mais especificamente, é fato que a renegociação da dívida significa a possibilidade de que o país retome o trânsito nos espaços de concessão de crédito, o que representa a recuperação de algum fôlego. Ao mesmo tempo, no entanto, o acordo mantém a Argentina presa em seu labirinto. Afinal, o que vai acontecer quando o FMI voltar a bater às portas de Buenos Aires em 2025?
ARGENTINA. Acuerdo Argentina-FMI. Ministério de Hacienda, jun.2018. Disponível em: https://www.argentina.gob.ar/sites/default/files/acuerdo_argentina-fmi-final1.pdf. Acesso em 31/01/2022.
JUEGUEN, Francisco. La pobreza en la Argentina llega al 40,8%, según la UCA. La Nación, 5 dez.2019. Disponível em: https://www.lanacion.com.ar/economia/para-uca-macri-deja-su-presidencia-pobreza-nid2313036/. Acesso em 31/01/2022.
NEMIÑA, Pablo.; LARRALDE, Juan. Prestamista, garante y deudor: el FMI en América Latina y el Caribe en la década posterior a la crisis financiera. Revista Sociedade e Cultura, v.23, 2020.
NEMIÑA, Pablo et al. Argentina y el FMI: análisis de un nuevo acuerdo. Escuela de Gobierno, dez.2018. Disponível em: http://escueladegobierno.chaco.gov.ar/files/documentos-de-trabajo/informe-endeudamiento-fmi.pdf. Acesso em 01/02/2022.
ORGAZ, Cristina J. Crisis en Argentina: 3 datos que muestran cómo se ha deteriorado la economía del país en las últimas semanas. BBC News Mundo, 2 set.2019. Disponível em: https://www.bbc.com/mundo/noticias-america-latina-49525952. Acesso em 31/01/2022.
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