posições e disputas em torno das agendas de flexibilização e de liberalização do bloco
As tratativas realizadas por Uruguai e China para produzir um estudo de factibilidade que eventualmente levaria a um tratado de livre comércio entre ambos os países é um dos mais importantes sintomas da crise que atualmente assola o Mercosul.
Desde setembro de 2021, Uruguai e China têm caminhado em direção ao aprofundamento das suas relações comercias. No entanto, o Tratado de Assunção, documento constitutivo do Mercosul, prevê em seu artigo 8º o compromisso por parte dos Estados membros de “coordenar suas posições nas negociações comerciais externas”. Isto significa que os países membros do Mercosul devem, necessariamente, realizar de maneira conjunta qualquer forma de negociação que implique na liberalização do comércio com países extrarregionais.
Ademais, a Decisão 32/00 do Conselho do Mercado Comum estabelece algumas restrições às negociações de acordos bilaterais. Em seu art.1º, ela afirma: “reafirmar el compromiso de los Estados Partes del Mercosur de negociar en forma conjunta acuerdos de naturaleza comercial con terceros países o agrupaciones de países extrazona en los cuales se otorguen preferencias arancelarias”.
O Uruguai, no entanto, afirma que um eventual acordo bilateral com a China não violaria as regras do Mercosul porque a Decisão 32/00 suspostamente não teria entrado em vigor. Esta posição é fortemente criticada pela Argentina, que vê na ação uruguaia uma ameaça à sobrevivência do bloco e, em menor medida, pelo Paraguai, um dos poucos países no mundo que possuem relações com Taiwan em detrimento de Pequim.
Há cerca de duas décadas, o Uruguai mantém a posição de defender a flexibilização desta regra, no que costumava contar com o apoio do Paraguai, outro sócio com forte vocação comercialista. Mais recentemente, no entanto, a posição em torno da defesa da liberdade para negociar acordos bilaterais passou a gozar de mais amplo apoio na região e parece ter se tornado uma espécie de panacéia capaz de resolver todos os problemas que o bloco e seus integrantes enfrentam atualmente.
Para sair deste imbróglio, o Uruguai tem sugerido a regionalização das negociações com a China, de modo que o acordo comercial deixaria de ser bilateral e passaria a incluir a todos os países membros do Mercosul. A China, por sua vez, afirmou recentemente que está aberta tanto à possibilidade de cooperação com o Mercosul em seu conjunto quanto à possibilidade de fazê-lo de maneira bilateral, como vem ocorrendo com o Uruguai.
Ademais da agenda da flexibilização do Mercosul, outro tema que produz enorme discordância é a redução da Tarifa Externa Comum (TEC), aplicada pelo Mercosul sobre produtos importados de países extrarregionais. O tema é uma demanda também antiga de Paraguai e Uruguai, quem reclamam que a alíquota atual encarece produtos essenciais e tensiosa suas economias. Mesmo o Brasil havia, inicialmente, apresentado uma proposta de redução da TEC em 50%, algo que resultou em forte oposição por parte de setores da indústria brasileira. A TEC, que atualmente possui uma alíquota média de 13%, deve ser reduzida para 10% após uma intensa negociação travada entre Brasil e Argentina, as duas economias mais industrializadas do bloco e, portanto, as que maiores pressões domésticas sofrem para manter algum grau de protecionismo.
A Cúpula de 2021 e o evento comemorativo de 30 anos do Mercosul
Em dezembro de 2021, foi realizada a 59ª Cúpula de Chefes de Estado do Mercosul, o mais importante evento desta instituição. Antes disso, em março do mesmo ano, havia ocorrido também um evento comemorativo que marcava o aniversário de 30 anos da criação do bloco. Em ambas as ocasiões, já havia se evidenciado a ausência de qualquer consenso acerca do funcionamento do Mercosul e dos seus rumos futuros.
Nesta ocasião, os dois principais temas debatidos foram a redução da Tarifa Externa Comum (TEC) e a flexibilização normativa do bloco. O governo uruguaio de Luis Lacalle Pou foi o que mais fortemente defendeu estes dois pontos, posição em que distoava fortemente da Argentina de Alberto Fernández. De fato, um dos momentos de maior tensão nesta edição do evento foi quando o presidente argentino pediu a formação de uma comissão que estudasse os impactos de uma eventual redução da TEC, que atualmente tem uma média de 13% sobre produtos importados de países extrarregionais, ao que o seu par uruguaio respondeu que “o Uruguai não tem tempo” e que “precisa destas mudanças”. Segundo Lacalle Pou, é urgente para o Uruguai que se avance no sentido da flexibilização para que o Mercosul possa acompanhar a velocidade com que o comércio internacional vem se transformando e de forma a garantir a inserção internacional de seus membros. Fernández, por sua vez, terminou por responder que a Argentina não quer ser um peso para ninguém e afirmou: “se creem que o Mercosul é uma âncora, que saiam do barco e tomem outro”.
Divididos e incapazes de chegar a qualquer entendimento, os países membros encerraram a 59ª Cúpula sem qualquer consenso e com apenas duas propostas a serem encaminhadas: uma referente à implementação de um estatuto que facilite o trânsito e a fixação de residência por parte dos cidadãos do bloco no território de qualquer Estado membro e outra acerca da criação de um observatório da qualidade da democracia no Cone Sul.
Os debates sobre a flexibilização do Mercosul no Brasil
No Brasil, a agenda da flexibilização do Mercosul possui apoio não apenas no Executivo – em especial, do Ministério da Economia, sob o comando do ultraliberal Paulo Guedes –, mas também de uma fração significativa do Legislativo. Em abril de 2021, uma comissão especial criada pelo Senado brasileiro concluiu que a liberdade de negociar acordos com países extrabloco seria fundamental para a garantia da sobrevivência do bloco no mercado internacional.
A comissão, que tinha como finalidade analisar o atual cenário do Mercosul e as suas três décadas de funcionamento, apresentou os resultados de suas discussões em um evento intitulado “Mercosul: avanços, desafios e perspectivas”. A iniciativa surgiu do senador e ex-presidente da República Fernando Collor de Mello (Pros-AL) e tinha entre os debatedores figuras como a economista Zélia Cardoso de Mello, ex-ministra da Economia, Fazenda e Planejamento do Brasil durante a gestão Collor. Ademais, estavam presentes Paulo Guedes e o atual ministro das Relações Exteriores, Carlos França.
Entre as posições observadas no evento, destacavam-se aquelas que defendiam a necessidade de que o Brasil, e o Mercosul como um todo, experimente um novo ciclo de abertura comercial, como aquele observado no início dos anos 1990, no contexto da criação do bloco. Ademais, muito se falou de uma certa “vocação comercial” que o Mercosul teria originalmente e que deve ser resgatada através de uma “agenda agressiva de negociações comerciais”.
Sobre a questão da redução da TEC, o ministro Paulo Guedes afirmou:
Nós até compreendemos a situação de membros que possam ter dificuldade de baixá-la no momento, mas nós gostaríamos de propor o movimento. Para o Brasil é importante. Nós achamos que é importante reduzi-la e fizemos uma proposta de reduzir apenas 10%. Quando você fala 10%, você tem uma tarifa de 30% de um produto específico, você está baixando de 30 para 27%. Isso aí não machuca ninguém. Isso aí é só para manter todo mundo aquecido, se não a turma acha que a economia vai continuar fechada. Nós temos que mandar um sinal falando: olha, nós estamos baixando um pouquinho todo mundo. É como se estivesse entrando numa esteira, fazendo um exerciciozinho, só para manter a forma física. Nós sempre dissemos para os nossos industriais que nós não íamos abrir de repente a economia brasileira, considerando que o industrial brasileiro tem uma bola de ferro na perna direita, que eram os juros de dois dígitos; uma bola de ferro na perna esquerda, que eram justamente os impostos excessivos; um piano nas contas, que são os encargos trabalhistas. Você não pode de repente abrir e falar: pode correr que o chinês vai te pegar. Você não pode abrir tudo de repente, de uma vez só, mas nós temos que mostrar que estamos indo nessa direção. E você mostra isso fazendo um pequeno passo inicial, baixando em 10% as suas tarifas e generalizadamente.
O chanceler Carlos França, por sua vez, tratou de destacar, em posição muito moderada quando comparada aquela adotada por seu antecessor, Ernesto Araújo, a importante contribuição do Mercosul para a inserção internacional brasileira e de lembrar que o bloco é integrado por economias em desenvolvimento que possuem estruturas muito distintas. Ademais, os países membros do Mercosul se caracterizam por padrões cíclicos de crescimento que, por vezes, são divergentes entre si, o que torna o aprofundamento da integração uma tarefa árdua e, inevitavelmente, marcada por avanços e recuos.
A Cúpula de 2022
A 60ª Cúpula de Chefes de Estado do Mercosul aconteceu recentemente, em XXX de julho, sob a presidência pró-tempore do Paraguai, e foi o palco de uma nova demonstração de dissenso e desarmonia. Já antes disso, em maio deste ano, em entrevista ao jornal argentino Clarín, o presidente uruguaio Luis Lacalle Pou havia feito duras críticas ao Mercosul por seu protecionismo, voltou a defender que o Uruguai precisa se abrir para o mundo e terminou com um recado que mais soava como ameaça: “Se quiser acompanhar, acompanhe. Se não, com prazer, iremos sozinhos”.
Diferente da Cúpula anterior, a 60ª conseguiu apresentar algum grau de unidade entre os sócios do Mercosul: a assinatura do tratado de livre comércio Mercosul-Singapura, cujas negociações haviam iniciado em 2019, a concordância por parte da Argentina com a proposta de que o acordo bilateral Urugual-China passe a ser analisado em conjunto e o entendimento entre Brasil e Argentina em torno de uma redução da TEC.
O acordo de livre comércio com Singapura deverá agora ser submetido à aprovação dos legislativos nacionais para, em seguida, entrar efetivamente em vigência. Com respeito a uma eventual negociação conjunta entre o Mercosul e a China, a ideia foi bem recebida pelo Uruguai, embora Lacalle Pou tenha feito questão de destacar que o tratado de livre comércio com o gigante asiático vai avançar, com ou sem a participação dos sócios do Mercosul. A ideia é que as negociações iniciais permaneçam de forma bilateral para que, mais adiante, os demais membros do Mercosul sejam convidados a participar.
Por fim, com respeito à redução da TEC, a proposta negociada por Argentina e Brasil, de reduzir a alíquota em 10%, foi acatada também por Paraguai e Uruguai e deve ser aplicada sobre uma lista de cerca de 8 mil produtos.
Resta ver agora se assistiremos a um fortalecimento da vontade política em torno da fundamental cooperação entre Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai, capaz de resgatar o caráter estratégico do Mercosul, ou se permaneceremos no caminho da fragmentação e da busca por saídas individuais para problemas coletivos.
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