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Foto do escritorFabiana de Oliveira

Segurança e soberania alimentar no Brasil


Fonte: Chokito/Divulgação


No Brasil, os debates em torno da segurança alimentar são mais antigos e mais frequentes do que aqueles referentes à soberania alimentar. Já em 1938, a partir das primeiras publicações de Inquéritos Alimentares, trabalho realizado por Josué de Castro, o Estado brasileiro realizou levantamentos e análise de dados referentes à questão da fome no país. Como lembra Valerio (2018), estes trabalhos de Josué de Castro constituíram o mais importante marco histórico do estudo da fome no país ao definir este tema como um problema político e como um obstáculo para o desenvolvimento do Brasil.


Como resultado direto dos estudos de Josué de Castro, Getúlio Vargas promoveu, em 1939, a criação do Serviço Central de Alimentação (SCA). Absorvido pelo Serviço de Alimentação da Previdência Social (SAPS) já no ano seguinte, o programa estava destinado a solucionar o problema da alimentação dos trabalhadores formais e de seus familiares através da oferta de restaurantes a preços populares e da venda de alimentos a preços subsidiados. Ademais, o SCA tinha a função de promover a educação alimentar dos trabalhadores através de atividades de formação e de propaganda (MAGALHÃES, 2015).


O SAPS, ademais de todas as funções do SCA, também desenvolvia atividades de caráter técnico-científico, como o desenvolvimento de pesquisas sobre alimentos brasileiros com o fim de melhor compreender o potencial nutritivo dos mesmos e as melhores formas de produção e armazenagem (MAGALHÃES, 2015). Desta maneira, muitas das políticas de assistência alimentar atualmente vigentes no Brasil têm sua origem no SCA e no SAPS, com destaque para os restaurantes populares e as políticas de merenda escolar (MACEDO et al., 2009). No entanto, embora fosse considerado um caso de sucesso de política pública de promoção da segurança alimentar em toda a América Latina, o SAPS foi descontinuado em 1967, quando o Brasil experienciava uma das fases de maior repressão durante o regime militar que tomara o poder a partir do golpe de 1964.


Em 1942, em um contexto de maiores preocupações diante da possibilidade de que o Brasil viesse a enfrentar o desabastecimento de gêneros alimentícios em razão do recrudescimento da II Guerra Mundial, foi criada a Coordenação da Mobilização Econômica (CME). Entre as suas diversas funções, cabia à CME coordenar as Comissões de Abastecimento estaduais, a quem, por sua vez, cabia regular o mercado de gêneros alimentícios desde a sua produção até a definição de preços máximos tanto no comércio atacadista como no varejista (GOMES et al., 1946).


Ainda na década de 1940, diversos mecanismos foram criados com o fim de realizar estudos técnicos sobre questões relativas à alimentação dos brasileiros e, assim, coletar dados suficientes para a formulação de uma Política Nacional de Alimentação. Entre estes mecanismos, destacam-se a Comissão Nacional de Alimentação (CNA), de 1945, e o Instituto Nacional de Nutrição (INN), de 1946. A partir do trabalho realizado pela CNA e o INN, foi lançado, em 1952, o documento Conjuntura Alimentar e Problemas de Nutrição no Brasil, que propunha ações que visavam o fortalecimento da merenda escolar e de outros mecanismos de alimentação das crianças e adolescentes, assim como o apoio à indústria nacional de alimentos (MACEDO et al., 2009).


A centralidade do Estado brasileiro na promoção da segurança alimentar levou, em 1962, à criação da Companhia Brasileira de Alimentos (COBAL), a quem competia, dentre outras coisas, a compra e a revenda de gêneros alimentícios essenciais e insumos necessários para a atividade agropecuária. A COBAL atuava principalmente em regiões não suficientemente atendidas pelas empresas comerciais privadas (BRASIL, 1962).


Em 1990, a COBAL foi integrada à Companhia Brasileira de Armazenamento (Cibrazem), também criada 1962, e à Companhia de Financiamento de Produção (CFP), cuja criação remonta a 1943, dando origem à Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), empresa pública ligada ao Ministério da Agricultura e que atua na execução de políticas públicas que visam o abastecimento e a regulação da oferta de alimentos essenciais. Entre as principais funções da Conab, está a operacionalização do Programa de Aquisição de Alimentos, política que integra ações de compra com doação simultânea, aquisição de sementes e apoio à formação de estoques pela agricultura familiar.


A partir da década de 1970, como resultado da Conferência Mundial de Alimentação, realizada em 1974, o conceito de segurança alimentar passou a ser diretamente articulado pelos órgãos públicos brasileiros. A principal mudança com respeito à abordagem adotada anteriormente foi a nova dimensão ganhada pelo tema, agora primordialmente centrada no indivíduo e em seus direitos, em detrimento do tradicional foco nos produtos alimentícios (MACEDO et al, 2009). No entanto, o aumento de produtividade da agropecuária e da agroindústria brasileira nas décadas anteriores não implicou na universalização do acesso seguro aos alimentos essenciais por parte de uma parcela significativa da população do país. Ao contrário, já que o Estudo Nacional da Despesa Familiar, medição realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 1975, revelou uma aterradora continuidade dos problemas identificados por Josué de Castro quase quatro décadas antes: o problema da fome no Brasil não apenas persistia, mas preservava as características de desigualdade regional. Naquele ano, cerca de 24% da população do Centro-Sul padeciam de insegurança alimentar elevada, enquanto que o mesmo ocorria com 39% da população da região Norte e com 48% da população do Nordeste brasileiro (IBGE, 1978).


Foi apenas com a posterior institucionalização de programas como o Programa Nacional de Alimentação e Nutrição (Pronan) e do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), a partir dos anos 1980, que o problema da fome começou a dar sinais de arrefecimento, como indicado pelo levantamento realizado pelo Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição (INAN) no ano de 1989, a Pesquisa Nacional sobre Saúde e Nutrição (PNSN). Ainda assim, o estudo indicava que 31% das crianças brasileiras menores de cinco anos padeciam de algum grau de desnutrição, sendo que 5% delas sofriam de desnutrição moderada ou grave (INAN, 1990).

O estudo do INAN destacava, ademais, a importância dos programas federais de suplementação alimentar – em especial, os programas de alimentação escolar –, que tinham o objetivo de universalizar o acesso à alimentação saudável, diversificada e suficiente para todas as famílias cuja renda era inferior e dois salários mínimos, grupo que totalizava 50% da população. Entre as políticas públicas criadas com essa finalidade, a que se demonstrou mais efetiva foi a da merenda escolar, que alcançava a 78% das crianças matriculadas nas escolas públicas brasileiras entre os anos 1989 e 1990 (INAN, 1990). Ainda assim, a PNSN chamava a atenção para o problema da insuficiência de cobertura de outros programas de natureza similar, como o que visava garantir a alimentação de mulheres gestantes e que alcançava a apenas 10% desta população. Ademais, as políticas sociais de combate à fome implementadas a partir dos anos 1980 ainda não se mostravam suficientes para enfrentar o problema das desigualdades regionais no Brasil, já que o problema da fome permanecia mais agudizado nas regiões Norte e Nordeste do que nas demais (idem).


Apesar dos dados disponíveis sobre programas de alimentação terem sido apenas aflorados aqui, pode-se afirmar que, no computo geral, os resultados preliminares do PNSN não permitem uma avaliação otimista do desempenho dos programas federais. Eles apresentam uma baixa cobertura e não atingem os mais necessitados. Tanto os dados referentes aos coeficientes de atendimento por regiões, quanto os relativos à distribuição desse atendimento por faixa de renda, são pouco favoráveis do ponto de vista da promoção da equidade. O atendimento do conjunto dos programas é maior nas regiões mais desenvolvidas e para os estratos de melhor renda (INAN, 1990, p.28-29).


O PNSN foi fundamental para oferecer à discussão sobre o problema da insegurança alimentar no Brasil uma nova compreensão: as políticas públicas que apenas visam a remediar o problema da fome são insuficientes e não alcançam os estratos mais pobres da sociedade brasileira. A ênfase da ação do Estado, portanto, deveria dar-se através da promoção do desenvolvimento econômico e da distribuição de renda (idem).


Na década de 1990, o enfrentamento da questão da fome passou a se dar especialmente a partir da articulação entre o Estado, em suas esferas local, estadual e federal, e a sociedade civil, seguindo as diretrizes previstas na recém-inaugurada Constituição Federal de 1988. Exemplo disso foi o lançamento da chamada Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida. Surgida em 1993, esta iniciativa tinha caráter nacional e se baseava principalmente na mobilização de um voluntariado através das “Campanhas da Fome” como forma de oferecer uma solução rápida ao problema da miséria, mas também de reverter um processo observado em todo o mundo, o da crise dos laços sociais e da solidariedade nacional.


Este tipo de ação, no entanto – e como é de se esperar –, se mostrava muito pouco eficiente diante das características mais estruturais do problema da fome no Brasil. Ademais, ela reforçava uma visão amplamente disseminada pelo pensamento econômico hegemônico do imediato pós-Guerra Fria, segundo a qual o Estado é um ator ineficiente, corrupto e excessivamente burocratizado, incapaz de dar respostas para os problemas coletivos. Esta visão era, ainda, fortalecida pela dinâmica de constantes cortes orçamentários em áreas sensíveis para a maioria da população. Exemplo disso foi o corte de 64% dos recursos públicos destinados ao Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e ao Programa de Apoio Nutricional e de Distribuição de Leite da Legião Brasileira de Assistência, promovidos pelo governo de Fernando Collor de Melo (1990-1992) (PELIANO & BEGHIN, 1992, apud REZENDE, 2022).


Outra iniciativa baseada na cooperação entre Estado e sociedade civil foi o Conselho Nacional de Segurança Alimentar (CONSEA), órgão de assessoramento da Presidência da República criado em 1993 e que tinha entre as suas competências a de formular, executar e monitorar as políticas de segurança alimentar e nutricional no país. De caráter consultivo e intersetorial, uma vez que estava integrado por representantes de diferentes ministérios e da sociedade civil, o órgão servia como espaço de diálogo, de articulação e de aprendizado mútuo entre o governo federal, as unidades da federação e a sociedade brasileira.


Ademais, o CONSEA, como lembra Castro (2019), foi uma das mais importantes conquistas da sociedade civil brasileira no pós-redemocratização. Entre as suas agendas estratégicas, destacavam-se:


[a] inclusão do direito à alimentação na Constituição Federal; defesa dos direitos constitucionais dos povos indígenas e comunidades quilombolas; fortalecimento das culturas alimentares em consonância com os biomas e ecossistemas brasileiros; fortalecimento da agricultura familiar e agroecológica; redução do uso de agrotóxicos; avanço da agenda regulatória, por exemplo, no âmbito da rotulagem de alimentos (transgênicos, ultraprocessados) e da tributação de alimentos e insumos; avanço do código sanitário de forma a torná-lo mais includente e adequado à produção em pequena escala e à comercialização em circuitos curtos, entre tantas outras (idem, p.2).


Ainda de acordo com Castro (ibidem), a atuação do CONSEA resultou na formulação ou no aprimoramento de uma série de mecanismos que, em conjunto, permitiram ao Brasil sair, em 2014, do Mapa Mundial da Fome, relatório elaborado pela agência da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) a partir do Indicador de Prevalência de Subalimentação. Segundo a FAO (2014), a parcela da população brasileira que se encontrava em situação de subalimentação se reduziu em 82% entre 2002 e 2013.


Ainda com respeito às estratégias de promoção da segurança alimentar no contexto dos anos 1990, Peliano (2020) destaca uma importante mudança ocorrida a partir do lançamento do programa Comunidade Solidária. Compromisso de campanha do então presidente Fernando Henrique Cardoso, o Comunidade Solidária se propunha como um mecanismo de combate à pobreza e à miséria que tinha como base ações públicas integradas e descentralizadas. Assim, abria-se mais espaço para a participação da sociedade civil e dos diferentes níveis do governo – federal, estadual e municipal (PELIANO, RESENDE & BEGHIN, 1995). Como afirma Peliano (2020), o Comunidade Solidária inovava ao redirecionar a ênfase da ação social do Estado brasileiro para a questão da pobreza em lugar do tradicional foco no problema da fome – algo que foi fortemente criticado por especialistas que viram nesta decisão um esvaziamento das políticas de segurança alimentar. Assim, programas prioritários do CONSEA foram incorporados pelo Comunidade Solidária, da mesma forma como o foram ações específicas da área da saúde, da educação, da moradia, do desenvolvimento rural e do apoio à geração de renda.


De novo, vale ressaltar que todos os programas que eram acompanhados pelo Consea foram absorvidos pelo Comunidade Solidária, tendo sido fortalecidos e ampliados. A distribuição nos municípios mais pobres dos alimentos disponíveis nos estoques do governo permaneceu sendo feita de acordo com a sistemática anterior. Na área do trabalho foi consolidada a proposta do programa de microcrédito com recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), que havia sido concebida, em 1994, pelo Consea, iniciada no Comunidade Solidária e, posteriormente, fortalecida no governo Lula. Outro exemplo de aprendizagem e continuidade foi o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), desenhado e iniciado pelo Ministério da Agricultura, em parceria com a Secretaria Executiva do Comunidade Solidária, e aprimorado e fortalecido no atual governo (PELIANO, 2020, p.31).


Já no início dos anos 2000, a chegada de Luiz Inácio Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores (PT), veio acompanhada do retorno da segurança alimentar a um papel de maior centralidade nas políticas sociais. A erradicação da fome no Brasil era uma das principais promessas de campanha de Lula e a primeira iniciativa a ser apresentada para este fim foi o programa Fome Zero. Lançado ainda em 2003, o Fome Zero foi o resultado de um amplo debate envolvendo o Estado, especialistas em segurança alimentar, movimentos sociais, ONGs e sindicatos e tinha como proposta a combinação de políticas públicas estruturais (destinadas à redistribuição de renda, geração de empregos, reforma agrária, etc.) com as intervenções de caráter emergencial e/ou compensatório (YASBEK, 2004). Para tanto, foi criado o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, um grupo interministerial foi organizado e o CONSEA, substituído pelo Conselho do Comunidade Solidária durante os governos de Fernando Henrique Cardoso, foi reconstituído.


O programa Fome Zero se organizava em quatro eixos: i) acesso aos alimentos; ii) fortalecimento da agricultura familiar; iii) geração de renda; iv) articulação, mobilização e controle social (SILVA, 2010). Assim, a ele estavam integradas iniciativas como o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), o Programa Nacional de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar (PAA), o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), as cozinhas comunitárias e a criação de novos Restaurantes Populares (idem). Ademais, o Fome Zero também estava diretamente associado ao Programa Convivência com o Semiárido, que consistiu na distribuição de milhares de cisternas para famílias do semiárido brasileiro e que visava promover o fortalecimento da agricultura familiar mesmo em locais marcados por fortes restrições ambientais através da captação e armazenagem da água da chuva.


A partir do Fome Zero, a alimentação voltava a ser vista como um direito humano básico e o combate à fome e à miséria se converteram no objetivo prioritário do Estado brasileiro. Como lembra Yasbek (2004), o programa Fome Zero se inseria em um contexto muito particular da sociedade brasileira. Segundo a autora, as eleições presidenciais de 2002, vencidas por Lula, marcavam a disputa pelo lugar em que o social deveria ocupar na construção da nação brasileira. Enquanto a direita liberal, representada pela candidatura de José Serra, do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), defendia um modelo de política social focalizado, assistencialista e que não rompe com a ótica seletiva e emergencial, Lula representava uma nova perspectiva, que se propunha a “forjar formas de resistência e defesa da cidadania dos excluídos (idem, p.106)”.


Entre as ações promovidas no âmbito do Fome Zero, uma das mais destacadas é o Programa Bolsa Família. O Programa Bolsa Família foi uma das exitosas experiências de transferência de renda condicionada do mundo. Criado em 2003, o programa consistia no pagamento de benefícios em dinheiro para famílias pobres, impondo aos beneficiários condicionalidades relacionadas à saúde e educação das suas crianças. Embora programas de transferência de renda condicionada não fossem exatamente uma novidade no Brasil, uma vez que já haviam sido realizados experimentos locais ao longo da década de 1990, como os de Campinas e do Distrito Federal (SOUZA et al., 2019), o Bolsa Família inovava por seu alcance e por ser um programa integrado a uma série de outras políticas públicas de caráter estrutural.


O Programa Bolsa Família operava com dois critérios de elegibilidade: as famílias em situação de extrema pobreza, independentemente de terem ou não crianças em seu núcleo, tinham direito a um benefício básico e de valor único. Ademais, tinham direito a um benefício variável, a depender do número e da idade dos filhos (até 15 anos, com um limite de três crianças inscritas; para jovens entre 16 e 17 anos, aplicava-se o Benefício Variável Aplicado ao Adolescente, com um limite de até dois beneficiários por família). As famílias em situação de pobreza, por sua vez, tinham direito ao benefício variável. A partir de 2012, as famílias em situação de extrema pobreza também passaram a ter direito ao Benefício de Superação da Extrema Pobreza, um valor variável que elevava a renda da família até um limite que lhe permitisse superar a condição de extrema pobreza.


Desde 2013, o Bolsa Família atendia a quase 13 milhões de famílias, o que implicava na inclusão de cerca de 54 milhões de pessoas. Como resultado, o programa havia retirado da situação de extrema pobreza a 3,4 milhões de brasileiros e havia permitido a outros 3,2 milhões abandonar a condição de pobreza (SOUZA et al., 2019). Da mesma forma, como destaca Cruz (2020), a partir de dados da Pesquisa Nacional de Amostras por Domicílio (PNAD), a insegurança alimentar havia sido reduzida de 30,2% para 22% dos brasileiros entre 2009 e 2013. Ademais, em 2013, o Brasil registrava 7,2 milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar grave, o que significava uma redução de 4,1 milhões de pessoas com respeito a 2009, e já no ano seguinte, em 2014, o país registrava menos de 5% da sua população sofrendo de baixo consumo calórico – o que permitiu ao Brasil sair, por primeira vez desde que o indicador foi criado, do Mapa da Fome da ONU (idem).


É preciso destacar, ainda, que, apesar de seu alcance, o Bolsa Família era um programa muito barato, representando um gasto público de apenas 0,44% do PIB em 2016.


Mais recentemente, no entanto, o Brasil passou a enfrentar um intenso processo de desmonte das políticas públicas e dos mecanismos criados com o fim de permitir o enfrentamento dos problemas da segurança e da soberania alimentar. Com a conclusão do impeachment promovido contra a então presidente Dilma Rousseff, o ciclo de governos do PT se esgotou e o partido foi substituído por uma coalizão formada por diferentes matizes da direita, liderada pelo até então vice-presidente Michel Temer, e, a partir de 2019, pelo recém-eleito Jair Bolsonaro.


Como resultado das mudanças políticas, ocorreu o esvaziamento do Programa Bolsa Família já a partir de 2016, quando o programa passou a reduzir o valor do benefício de diversas famílias e a desligar outras tantas (OLIVEIRA, 2019). Apenas em abril de 2018, pouco antes de ser anunciado um reajuste de 5,67% nos valores transferidos aos beneficiários do Bolsa Família, 392 mil famílias foram desligadas do programa. Entre junho e julho do ano anterior, outras 543 mil famílias haviam sido desligadas do Bolsa Famíli pelo governo Michel Temer (MADEIRO, 2018). Em 2021, já sob o governo de Jair Bolsonaro, o Bolsa Família contabilizava quase 2,3 milhões de famílias que, embora tivessem direito ao benefício oferecido pelo programa, aguardavam na fila para que o mesmo lhes fosse concedido (PODER 360, 2021).


Como lembra Cruz (2020), o Grupo de Trabalho da Sociedade Civil para a Agenda 2030, composto por membros da sociedade civil e que se dedica à monitorização dos compromissos assumidos pelo Brasil no âmbito dos Objetivos do Desenvolvimento do Milênio da ONU, alertava desde 2017 para a retomada do crescimento nos indicadores de pobreza e de extrema pobreza do país, assim como do recrudescimento do problema relacionado à insegurança alimentar. Tal piora se deveu à crise fiscal instalada no país desde 2015, à contração do orçamento destinado à política social em razão da aprovação da PEC 55/2016[1] e ao aumento da precarização laboral registrado logo após a aprovação da reforma trabalhista de 2017.

Em que pese o cenário social crítico observado no Brasil ao longo dos últimos anos, o governo Bolsonaro deu claros sinais desde o início de que a questão da fome não teria qualquer centralidade em sua gestão. Sintomático disso foi a extinção do CONSEA, através da Medida Provisória 870, editada no mesmo dia da posse de Bolsonaro na presidência, em 01 de janeiro de 2019. Ademais, o governo Bolsonaro vetou do Plano Plurianual 2020-2023 os compromissos orçamentários adquiridos no âmbito dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável – inclusive os relacionados ao combate à pobreza e à fome – e desfez a comissão nacional até então responsável pela implementação dessa agenda no Brasil (CRUZ, 2020).


Até mesmo a política de instalação de cisternas no semiárido, programa com reconhecimento internacional e que chegou a receber o Prêmio Política para o Futuro da Convenção das Nações Unidas para o Combate à Desertificação (UNCCD) foi desmontada pelo governo Bolsonaro. Em um primeiro momento, o programa que outrora instalava cerca de 100 mil unidades por ano instalou apenas 3 mil novos reservatórios ao longo de todo o ano de 2021. O orçamento destinado ao programa, que era de R$63 milhões por ano, foi reduzido a R$32 milhões também em 2021 (FERREIRA, 2021).


Ademais do desmonte das políticas de combate à fome, Jair Bolsonaro adotou ao longo de seu mandato um discurso negacionista com respeito ao problema. Em mais de uma ocasião, o mandatário negou a existência da fome no Brasil (REDE BRASIL ATUAL, 2022) ou alegou que havia um exagero nos levantamentos que calculam em 33 milhões o número de pessoas que padece de grau moderado ou crítico de insegurança alimentar no país, 14 milhões a mais do que em 2020, e em 125 milhões o número de brasileiros que não têm comida garantida todos os dias (REDE PENSSAN, 2022). Assim, o país voltou ao mesmo patamar observado há 30 anos.

Assim, ainda que o Brasil nunca tenha efetivamente erradicado o problema da fome e que pouca atenção tenha sido dada ao problema da soberania alimentar nos períodos mais recentes, é evidente que o país apresentou avanços nesse sentido ao longo das últimas década, com especial ênfase para o período entre 2003 e 2014. No entanto, o Brasil interrompeu uma trajetória de avanços no combate à insegurança alimentar desde 2016, tendência que se aprofundou durante o período governado por Jair Bolsonaro tanto em decorrência do desmonte das estratégias estruturais e emergenciais de combate à fome como em razão da ausência de qualquer resposta rápida aos desafios impostos pela pandemia de Covid-19, a partir de 2020.

[1] A PEC 55/2016, também chamada de PEC do Teto de Gastos, é uma emenda à Constituição aprovada durante o governo Michel Temer e que prevê a limitação dos gastos públicos por um período de 20 anos.


Referências


CRUZ, Samyra R. Uma análise sobre o cenário da fome no Brasil em tempos de pandemia de Covid-19. Pensata, v.09, n.02, 2020.

FERREIRA, Flávio. Bolsonaro desmonta programa de cisternas e favorece uso político de emendas. Folha de São Paulo, 05 dic.2021. Disponible en: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/12/bolsonaro-desmonta-programa-de-cisternas-e-favorece-uso-politico-de-emendas.shtml. Acceso en 28 jun.2022.

MADEIRO, Carlos. Antes de reajuste anunciado por Temer, governo tira 392 mil famílias do Bolsa Família. Uol, 01 may.2018. Disponible en: https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2018/05/01/antes-de-reajuste-anunciado-por-temer-governo-tira-392-mil-familias-do-bolsa-familia.htm. Acceso en 28 jun.2022.

PELIANO, Ana M.T.M.; RESENDE, Luis F.L.; BEGHIN, Nathalie. O Comunidade Solidária: uma estratégia de combate à fome e à pobreza. Planejamento e Políticas Públicas, n.12, pp.19-39, ene-jun.1995.

PODER 360. Mais de 2,2 milhões de famílias estão na fila de espera do Bolsa Família. Disponible en: https://www.poder360.com.br/brasil/mais-de-22-milhoes-de-familias-estao-na-fila-de-espera-do-bolsa-familia/. Acceso en 28 jun.2022.

REDE BRASIL ATUAL. Em Vitória da Conquista, Bolsonaro volta a dizer que não existe fome no Brasil. 27 ago.2022. Disponible en: https://www.redebrasilatual.com.br/politica/em-vitoria-da-conquista-bolsonaro-volta-a-dizer-que-nao-existe-fome-no-brasil/. Acceso en 28 jun.2022.

REDE PENSSAN – REDE BRASILEIRA DE PESQUISA EM SOBERANIA E SEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL. II Inquérito nacional sobre insegurança alimentar no contexto da pandemia de Covid-19 no Brasil. 2022. Disponible en: https://olheparaafome.com.br/wp-content/uploads/2022/06/Relatorio-II-VIGISAN-2022.pdf. Acceso en 25 jun.2022.

SILVA, Luiz I.L. Prefácio. In: ARANHA, Adriana V. Fome Zero: Uma História Brasileira. Brasília: Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, 2010.

SOUZA, Pedro H.G.F. et al. Os efeitos do Programa Bolsa Família sobre a pobreza e a desigualdade: um balanço dos primeiros quinze anos. IPEA, Texto para Discussão 2499, Rio de Janeiro, ago.2019. Disponible en: https://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/9356/1/td_2499.pdf. Acceso en 26 jun.2022.

YASBEK, Maria C. O Programa Fome Zero no contexto das políticas sociais brasileiras. São Paulo em Perspectiva, n.18, v.2, pp.104-112, 2004.



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