As atividades da 77ª reunião da Assembleia Geral das Nações Unidas tiveram início em 14 de setembro, mas o ponto alto deste evento anual é sempre a chamada “semana de alto nível”, aquela em que os líderes dos 193 países membros da ONU se reúnem para discutir os principais desafios que se impõem à comunidade internacional.
A edição deste ano da reunião da Assembleia Geral da ONU esteve marcada por diversas estreias de presidentes latino-americanos recém-eleitos e pela que provavelmente será a última intervenção de Jair Bolsonaro como mandatário brasileiro.
A seguir comentados os pontos principais de alguns dos discursos realizados pelos chefes de Estado da América Latina.
Jair Bolsonaro - Brasil
Jair Bolsonaro manteve a tendência observada nos últimos anos de realizar um discurso que está mais dirigido ao público doméstico do que aos seus pares reunidos em Nova York. Assim, na edição da reunião da Assembleia Geral da ONU deste ano, o mandatário brasileiro defendeu a sua gestão da pandemia de Covid-19, discursou sobre a sua política de combate à corrupção e apresentou dados nem sempre precisos sobre o desempenho da economia brasileira.
Com respeito à crise sanitária, Bolsonaro afirmou que sua gestão não poupou esforços para salvar vidas e preservar os empregos dos brasileiros, o que, segundo ele, reforça a condição de autoridade do Brasil na agenda global de saúde pública. Ele defendeu, ainda, que que o seu governo lançou uma ampla campanha de vacinação que contava, inclusive, com a produção doméstica de vacinas. A afirmação, obviamente, contrasta com a realidade: Bolsonaro não apenas negou a gravidade da pandemia de coronavírus como também criticou reiteradamente a política de isolamento social promovida pelos governos locais e estaduais. Ademais, o presidente brasileiro havia se manifestado em diversas ocasiões contra os imunizantes aprovados pela Organização Mundial da Saúde e defendeu tratamentos que não dispunham de qualquer comprovação científica.
Em outro momento de seu discurso, Bolsonaro afirmou que seu governo extirpou a corrupção sistêmica outrora existente no Brasil, acusando as gestões progressistas que o antecederam de ter desviado da Petrobrás mais de US$170 bilhões. Segundo Bolsonaro, o responsável por tal esquema foi condenado em três instâncias com unanimidade, o que afirma sem citar nominalmente a Luiz Inácio Lula da Silva. Assim, o presidente brasileiro claramente ignora as suspeitas que pairam sobre o patrimônio imobiliário de sua família, sobre as negociações em torno da compra da vacina Covaxin e sobre os contratos das diversas privatizações e concessões à iniciativa privada realizadas durante o seu mandato.
Bolsonaro também comemorou o desempenho da economia brasileira nos últimos trimestres, afirmando que a pobreza extrema sofreu forte queda, que a inflação está em baixa e que a criação de empregos apresenta tendência de crescimento. Segundo ele, o Brasil segue “o caminho de uma prosperidade compartilhada” não apenas com os brasileiros, mas também com os vizinhos e com os parceiros globais do país. Para Bolsonaro, essa “prosperidade compartilhada” é visível nos números das exportações brasileiras de alimentos, momento em que aproveitou para fazer afagos no agronegócio. Com isso, o presidente escolhe ignorar que cerca de 33 milhões de brasileiros vivem em situação de fome, quadro similar ao observado na década de 1990 e que se deve principalmente ao desmonte de políticas públicas fundamentais para o combate à insegurança alimentar. Ademais, no que pese à queda registrada no desemprego, o número de trabalhadores informais no Brasil registrou o número recorde de 39 milhões de pessoas, segundo a Pnad Contínua/ IBGE. Isso significa que 40,1% da população ocupada do país está na informalidade.
Alberto Fernández - Argentina
O presidente argentino Alberto Fernández escolheu iniciar o seu discurso agradecendo a comunidade internacional pela solidariedade oferecida à Argentina e à vice-presidente Cristina Kirchner, quem recentemente foi vítima de um atentado. Segundo o mandatário, a tentativa de magnicídio alterou a ordem pública do país e tinha como fim o objetivo de fragilizar a democracia duramente conquistada pelos argentinos há quadro décadas. Para Fernández, o que está em jogo é a manutenção do pacto do “Nunca Mais”, firmado coletivamente pelos argentinos com o fim do regime militar de 1976 e baseado no completo rechaço a qualquer forma de violência política.
Foi assim que Fernández buscou chamar a atenção para os riscos engendrados pelos discursos extremistas e violentos que buscam semear o sentimento anti-política e que se aproveitam de um cenário global tão desafiador como pode ser o imposto por uma pandemia seguida de uma guerra de impactos globais. Nesse sentido, o presidente argentino conclamou a comunidade internacional para rechaçar, de maneira enérgica, as forças políticas que promovem a divisão e a polarização extrema no seio das sociedades democráticas.
Segundo Alberto Fernández, a enorme desigualdade econômica e social é outro grande desafio que deve ser enfrentado pela comunidade internacional. Para o mandatário, a crise sanitária tornou este problema ainda mais evidente: a pandemia de Covid-19 produziu um número de vítimas quase quatro vezes maior nos países em desenvolvimento do que aquele observado nos países desenvolvidos.
A guerra entre Rússia e Ucrânia também foi um dos temas incluídos no discurso do presidente argentino. Para Fernández, é imperativo que o multilateralismo e a cooperação sejam fortalecidos, assim como que o império da não violência seja preservado, como forma de proteger os mais vulneráveis dos impactos diretos produzidos pelo avanço russo sobre o território ucraniano. Entre tais impactos, o mandatário argentino destaca o recrudescimento da pressão inflacionária, algo que afeta a Argentina de maneira aguda: os preços no país aumentaram 78,5% entre 2021 e 2022, índice mais alto desde 1991.
Alberto Fernández aproveitou para criticar as práticas econômicas e financeiras que, segundo ele, o mundo desenvolvido busca impor ao mundo que tenta se desenvolver. Para o argentino, estas práticas impostas às nações endividadas apenas produzem mais pobreza e desigualdade, impedindo a edificação de sociedades mais justas, livres e estáveis. Tal crítica é feita em um contexto marcado pela recente renegociação da dívida externa que a Argentina adquiriu junto ao Fundo Monetário Internacional (FMI) durante o mandato de Maurício Macri e que resultou, inclusive, na fragmentação da aliança peronista que sustenta o governo de Alberto Fernández.
Ademais de demandar uma reforma dos organismos financeiros internacionais, de modo a que passem a observar os preceitos dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) e da Resolução 69/319 da Assembleia Geral da ONU sobre reestruturação de dívidas soberanas, Alberto Fernández também defendeu um sistema de comércio internacional mais justo, transparente, equitativo e previsível. Com novas regras para o comércio de produtos agrícolas, atualmente fortemente distorcido pelas políticas de subsídios das grandes potências comerciais, os países exportadores de alimentos poderão aumentar a sua produção e, logo, contribuirão para o enfrentamento da insegurança alimentar.
A Argentina de Alberto Fernández também denunciou as sanções econômicas impostas à Cuba e à Venezuela como ilegítimas e como práticas que violam os princípios da própria ONU. Quanto ao Irã, que também é alvo de diversas sanções, o mandatário argentino instou o país persa a colaborar com as autoridades argentinas para que os responsáveis pelo ataque à Associação Mutual Israelita Argentina (AMIA), ocorrido em 1994, sejam julgados e condenados. Por fim, a Argentina conclamou o Reino Unido a retomar o diálogo acerca da soberania sobre as Ilhas Malvinas e que a ONU reforce seus esforços no sentido de promover negociações que possam pôr fim a esta anacrônica situação colonial.
Gustavo Petro - Colômbia
Estreante em uma Assembleia Geral da ONU, Gustavo Petro fez uma das intervenções mais impactantes entre os líderes latino-americanos. O recém-empossado presidente colombiano iniciou seu discurso denunciando o terror que resulta da “guerra às drogas”, estratégia de combate ao narcotráfico baseada na cooperação com os Estados Unidos desde 1998, ano do início do Plan Colombia. Segundo Petro, a prática de fumigação aérea visando a eliminação dos cultivos de coca tem se mostrado ineficiente para conter a produção de drogas ilícitas e tem, ao mesmo tempo, contaminado os rios, solo e destruindo cultivos de alimentos. Assim, existe uma evidente hipocrisia entre os que conclamam os países em desenvolvimento para que se comprometam com a preservação ambiental e que, ao mesmo tempo, impõem a estas mesmas nações práticas que levam à destruição das florestas e à desorganização dos povos que protegem as zonas verdes.
Ademais, a “guerra às drogas” resulta em números assombrosos de mortes violentas e em encarceramento em massa. De fato, segundo a Junta Internacional de Fiscalización de Estupefacientes (JIFE) em relatório de 2019, 33% de todos os homicídios registrados no mundo ocorriam na região da América Latina e do Caribe. O estudo também indica que estes números são especialmente mais alarmantes no Brasil, Colômbia e Venezuela, países que superam a média regional de 22 homicídios a cada 100 mil habitantes.
Assim, Petro denuncia, os colombianos são corpos descartáveis à serviço das adicções que assolam os países ricos: para saciar a necessidade de anestesia, está a cocaína que resulta dos cultivos de Tumaco, Antioquia ou Putumayo-Caquetá; para saciar a necessidade de consumo, estão o carvão da fronteira com a Venezuela e o petróleo de Santander ou Huila.
Nayib Bukele – El Salvador
Recentemente convertido em uma espécie de herói da utopia anarco-capitalista, Nayib Bukele iniciou seu discurso junto à Assembleia Geral da ONU apresentando a El Salvador como o país “dos vulcões, do surf, do café, dos bitcoins e da liberdade”. Isso porque, desde setembro de 2021, o país centro-americano se converteu na única nação do mundo a adotar o bitcoin como moeda de curso legal.
Em sua breve intervenção, Bukele decidiu centrar-se na questão da liberdade. Segundo o presidente, o seu país recentemente tomou consciência acerca do valor da liberdade, uma vez que ali se acumulam anos e anos de sujeição e de domínio exercido por nações mais poderosas. Este trecho faz clara referência aos Estados Unidos, país com quem com o governo de Bukele nutre uma série de controvérsias desde que o democrata Joe Biden chegou ao poder. Entre os diversos pontos de tensão do relacionamento bilateral, destacam-se as sanções aplicadas pelo governo dos EUA a numerosos funcionários do alto escalão do governo salvadorenho, acusados de chefiar esquemas de corrupção milionários ou de negociarem com líderes de gangues presos.
Ademais, a gestão Biden tem utilizado de sua influência junto à Organização dos Estados Americanos (OEA) para pressionar o governo de Bukele diante do rápido processo de deterioração da ordem democrática enfrentado pelo país centro-americano. Exemplo disso foi quando, em fevereiro de 2020, Bukele autorizou a entrada das tropas do Exército no edifício da Assembleia Legislativa de El Salvador, com o fim de pressionar os parlamentares para que fosse aprovado um pedido de empréstimo junto ao Banco Centro-Americano de Integração Econômica, de modo a financiar o reaparelhamento da Polícia e do próprio Exército do país. Em seguida, em maio de 2021, Bukele avançou sobre o Judiciário salvadorenho ao promover a destituição de cinco ministros da suprema corte, assim como do procurador-geral da república.
Em seu discurso, Bukele também afirmou que qualquer pessoa que visite El Salvador, se sentirá seguro para visitar todas as partes do país. Neste ponto, Bukele faz referência à sua guerra contra as brutais gangues centro-americanas, conhecidas como maras. Desde junho de 2022, a gestão de Bukele tem adotado uma política de “mão dura” contra as maras, o que resultou na detenção de mais de 35 mil pessoas supostamente vinculadas às gangues. No entanto, o estado de exceção implementado pelo governo tem sido duramente criticado por possibilitar detenções arbitrárias e o total desrespeito às garantias básicas do Estado democrático de direito.
Comments