Fabiana de Oliveira
A Colômbia vive hoje um momento inédito em sua história: é a primeira vez que a correlação de forças do país se mostra claramente favorável à vitória de um candidato de esquerda. Isso porque o progressista e ex-guerrilheiro Gustavo Petro está há meses na posição de favorito para as eleições presidenciais que serão realizadas em 29 de maio deste ano.
Petro foi prefeito de Bogotá e senador, mas o que torna a figura mais debatida do cenário político colombiano atual é o seu passado como membro do Movimento 19 de Abril (M-19), guerrilha de esquerda na qual ingressou quando tinha apenas 17 anos. Este histórico, somado às suas convicções atuais, convertem Petro, ao mesmo tempo, na esperança dos que desejam uma transformação social no país e em uma ameaça para os que nele veem os riscos de penetração do “bolivarianismo” e do “socialismo do século XXI” na Colômbia (GONZÁLEZ, 2021).
Nada disso, no entanto, impede que Petro viva o seu melhor momento, ao disputar as eleições em um contexto marcado pelo esgotamento do “uribismo”, projeto político que até aqui havia aglutinado a diversos setores da direita colombiana em torno do ex-presidente Álvaro Uribe e que havia se transformado em uma força hegemônica na política do país ao vencer oito das últimas nove eleições presidenciais (TRIMIÑO, 2021). O discurso político que caracteriza o uribismo, especialmente baseado no ressentimento em relação às guerrilhas que atuam ou atuaram no país, também parece ter perdido a aderência apresentada no passado, dando lugar para demandas relacionadas ao emprego digno, ao acesso à terra e à proteção dos direitos indígenas.
O cenário eleitoral e a crise política colombiana
Muito embora mais de 50 pré-candidatos tenham se apresentado para disputar as internas de seus partidos, o cenário mais concreto é o de polarização entre o Pacto Histórico, coalizão integrada por diversos grupos progressistas e por setores da direita frustrada com o uribismo, e o Centro Democrático, partido do atual presidente Iván Duque e que inicialmente apresentou como candidato o economista Óscar Iván Zuluaga, quem já havia disputado uma eleição presidencial em 2014, quando foi derrotado por Juan Manoel Santos.
Ainda que Zuluaga se mostrasse moderado quando comparado aos setores mais radicais do uribismo, a sua candidatura também se sustentava no ressentimento e no rechaço aos acordos de paz firmados entre o Estado colombiano e as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC) em 2016, na defesa da política de guerra contra as drogas e nos esforços no sentido de manter o isolamento internacional da Venezuela (GONZÁLEZ, 2021).
Uma outra agrupação política que ganhou relevância nesta disputa é a Coalición Centro Esperanza, que tem como líder o ex-prefeito de Medellín, Sergio Fajardo, e que, embora se apresente como a alternativa de centro, se mostra sintonizada com as necessidades mais urgentes do eleitorado ao utilizar um discurso centrado na defesa da educação pública e da democratização do acesso à terra, assim como na defesa dos mecanismos de justiça transicional criados pelos acordos de paz. Outros temas que aparecem na candidatura de Fajardo são a implementação de uma renda básica universa e a retomada das relações com a Venezuela (GONZÁLEZ, 2021).
É evidente, portanto, que o cenário eleitoral colombiano indica que parcelas significativas da sociedade buscam algum grau de ruptura com respeito às bases principais do uribismo. Tal tendência já podia ser observada ao longo da década passada, em especial durante episódios como as manifestações universitárias de 2011 e de 2018, a greve agrária de 2013 e as diversas manifestações das populações indígenas (TRIMIÑO, 2021).
Como resultado, o descontamento popular rapidamente passou a ser refletido nos índices de popularidade dos governos últimos governos. No caso de Iván Duque, atual presidente colombiano, os baixíssimos níveis de aprovação de sua gestão são evidentes desde o início de seu mandato, em agosto de 2018. Em dezembro desse mesmo ano, as pesquisas já mostravam Duque como o presidente mais impopular em seus primeiros cem dias de governo em toda a história da Colômbia, uma vez que era aprovado por apenas 22% da população. Um ano depois, em dezembro de 2019, 79% dos colombianos acreditavam que o país estava piorando, contra apenas 11% que acreditavam ver uma melhora. As pesquisas mais recentes, realizadas em fevereiro de 2022, marcam uma continuidade desta tendência, já que o governo de Duque é rechaçado por 71% dos colombianos e aprovado por apenas 22%.
Protestos populares de 2021. Foto: Carlos Ortega/EFE
Toda esta impopularidade não é grátis, já que o governo de Iván Duque é um fracasso em quase todos os sentidos. Do ponto de vista do combate à pobreza, por exemplo, suas políticas não apenas se mostraram ineficientes para diminuir os níveis de vulnerabilidade social em que se encontram os 42,5% da população colombiana que sobrevivem com menos de 331.688 pesos colombianos mensais (cerca de 416 reais), como muitos dos indicadores sociais medidos pelo Departamento Administrativo Nacional de Estadística (DANE) apontam para seu pior nível desde 2012.
Foi no governo de Iván Duque, ainda, que a Colômbia entrou de fato no ciclo de protestos populares massivos que tomou vários países latino-americanos nos últimos anos. Em 2019, milhares de pessoas se somaram ao que ficou conhecido como o “paro nacional”, enormes protestos populares em oposição às políticas econômicas, sociais e ambientais levadas a cabo pelo governo, mas que também tinham como propósito denunciar a corrupção, o descumprimento por parte do Estado dos acordos de paz firmados com as FARC e o assassinato de lideranças sociais.
Entre abril e outubro de 2021, novas manifestações multitudinárias foram convocadas nas principais cidades do país, desta vez em oposição à reforma tributária regressiva que Duque acabara de apresentar ao legislativo. As imagens de forte repressão contra os manifestantes apenas alimentaram ainda mais a ira popular e se somaram a uma série de outros descontentamentos, como com respeito à política de contenção da pandemia de Covid-19 no país e ao empobrecimento da população. Foi neste cenário de convulsão social que Iván Duque e seu padrinho político, Álvaro Uribe, foram execrados pelas massas populares, ao mesmo tempo em que lideranças progressistas, entre elas Gustavo Petro, ganharam projeção nacional.
O favoritismo de Gustavo Petro e as eleições legislativas
Os resultados da gestão de Iván Duque na presidência da República contrastam enormemente com os de Gustavo Petro enquanto prefeito de Bogotá, entre 2012 e 2015. Foi durante o mandato de Petro que Bogotá passou a ter uma Secretaria da Mulher – que esteve especialmente dedicada à construção de mecanismos de proteção às trabalhadoras sexuais –, de um Centro de Cidadania LGBTI e de órgãos que visavam a garantia dos direitos reprodutivos das mulheres. Ademais, uma ampla política focada na promoção da educação e da geração de emprego para os jovens teve como resultado a redução da violência urbana, enquanto que os homicídios caíram para o menor nível em 30 anos. A redução da pobreza foi outra marca de sua gestão, uma vez que, ao terminar o mandato, Petro havia logrado reduzir a pobreza multidimensional de Bogotá de 12% para 4,7% (GONZÁLEZ, 2021).
Foto: Luis Robayo/ AFP
Sem embargo, Gustavo Petro tem sido alvo de críticas por parte da direita colombiana que o apontam como uma liderança populista, que prega o ódio de classe e o ressentimento de pobres contra ricos e que afirmam que um futuro governo do Pacto Histórico teria como base a perseguição às elites e a destruição da indústria petroleira nacional como forma de viabilizar sua política ambiental. Por parte do centro político, as críticas se concentram nos níveis de rejeição que uma candidatura como a de Petro apresenta, o que teria sido a razão das derrotas sofridas por ele quando concorreu à presidência em 2010 e em 2018.
Desta forma, as recentes eleições legislativas, ocorridas em 13 de março, foram encaradas como um importante termômetro político e terminaram por confirmar o favoritismo da coalizão liderada por Gustavo Petro. Isto porque a lista do Pacto Histórico foi a mais votada, obtendo a maioria das cadeiras do Senado e ficando em primeiro lugar em porcentagem de votos na disputa pelas cadeiras da Câmara dos Deputados. O Centro Esperanza também obteve resultados expressivos ao lograr 12,28% dos votos, votação superior a obtida pelo Partido Centro Democrático. Tais resultados levaram o candidato do partido uribista, Óscar Iván Zuluaga, a retirar-se da disputa à presidência e a declarar seu apoio a Frederico Gutiérrez, ex-prefeito de Medellín e nome escolhido para representar a coalizão conservadora.
Estas eleições legislativas também foram históricas por outras razões, entre elas pela vitória de Carmen Felisa Ramírez, líder indígena que foi eleita para o Congresso através de votos obtidos por colombianos que vivem no exterior, população que tradicionalmente vota pelos candidatos uribistas. Também chama a atenção a eleição o aumento da participação de mulheres no parlamento colombiano e a eleição de lideranças de movimentos LGBTQIA+ ou ambientalistas. Este será, por tanto, um legislativo muito mais diverso e mais representativo das profundas transformações que a sociedade colombiana experimenta.
Ainda assim, esta vitória inédita da esquerda colombiana não é o suficiente para garantir que, uma vez eleito em maio, Petro terá a maioria para governar. Embora a nova conformação do Congresso seja a mais anti-uribista da história, o legislativo colombiano permanece bastante fragmentado. O fiel da balança será o Partido Liberal, que obteve 13,39% dos votos e que, à semelhança do partido de mesmo nome do Brasil, tende ao fisiologismo.
Denúncias de fraude
É importante dizer, no entanto, que apesar deste cenário extremamente favorável para as forças progressistas colombianas, existe a preocupação de que as eleições de maio não ocorram dentro da mais completa normalidade democrática. Sintomático disso foi que, apenas um dia depois da publicação dos resultados legislativos, Gustavo Petro afirmou que cerca de 500 mil votos do Pacto Histórico para o Senado não haviam sido contabilizados. Uma revisão por parte da Registraduría Nacional del Estado Civil da Colômbia, órgão responsável pela organização e supervisão das eleições no país, confirmou que faltavam 390 mil votos ao total obtido pela frente de esquerda, fazendo-a passar de 2.302.847 para 2.692.999 votos, o que garante à coalizão de Petro três cadeiras a mais na Câmara Alta.
Em seguida, foi a vez do conservador Centro Democrático expressar sua desconfiança com os resultados. Desde então, lideranças de partidos das mais diferentes posições políticas têm pedido a renúncia do Registrador Geral, Alexander Vega, e muito se tem falado no país sobre a necessidade de uma recontagem geral dos votos, o que poderia eventualmente alterar o calendário para as eleições presidenciais e que contribui para uma desconfiança generalizada com respeito à integridade do processo eleitoral. Cabe lembrar que os órgãos da justiça eleitoral colombiana, em especial o Consejo Nacional Electoral (CNE) encontram-se atualmente sob forte influência uribista.
Tais ações trouxeram à memória dos colombianos um episódio ocorrido nas eleições presidenciais de 1970, quando uma manobra realizada a partir das instituições resultou na vitória do candidato conservador Misael Pastrana, quem se encontrava atrás do militar de reserva Gustavo Rojas Pinilla nas contagens de voto. Esta fraude deixou profundas marcas na sociedade colombiana e resultou, inclusive, no surgimento do próprio M-19, guerrilha que havia sido integrada por Petro.
A Colômbia é, portanto, um dos países da América Latina mais fortemente caracterizados pelo conservadorismo e pela violência política e, ainda que o cenário eleitoral indique fortemente o esgotamento do uribismo, a verdade é que a direita colombiana rapidamente tem se reorganizado em torno de outros partidos tradicionais, como o Liberal e o Conservador, que atualmente se posicionam como segunda e terceira forças políticas do país em termos de representação parlamentar, respectivamente. Ademais, não se pode ignorar o altíssimo nível de abstenção das eleições legislativas recentes, quando mais de 50% dos eleitores registrados não compareceram para votar.
Assim, esta é, sem dúvidas, uma conjuntura de aparente mudança de prioridades dos colombianos e de fortalecimento de um projeto político progressista, mas que também traz consigo uma série de desafios não só para que Petro ganhe as eleições, mas também para que assuma o poder, para que nele permaneça e para que os anseios populares por justiça e igualdade sejam de fato atendidos.
Referências
GONZÁLEZ, María F. Las batallas de Gustavo Petro. Nueva Sociedad, nov.2021. Disponível em: https://www.nuso.org/articulo/petro-izquierda-colombia-centro-fajardo-duque-uribe-perfil/. Acesso em 28 de março de 2022.
TRIMIÑO, Alexander G. A explosão social e a crise do uribismo. Latinoamerica21, mai.2021. Disponível em: https://latinoamerica21.com/br/a-explosao-social-e-a-crise-do-uribismo/. Acesso em 27 de março de 2022.
VALDÉS, María F.; TRUJILLO, Alejandra. Colombia ante la posibilidad de un vuelco histórico. Nueva Sociedad, mar.2022. Disponível em: https://www.nuso.org/articulo/colombia-petro-francia-marquez-izquierda-elecciones-presidencia/. Acesso em 28 de março de 2022.
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