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Foto do escritorFabiana de Oliveira

Cambio de época no Chile: Gabriel Boric e o novo progressismo latino-americano

Fabiana de Oliveira


A vitória de Gabriel Boric no segundo turno das eleições presidenciais chilenas de 2021 não apenas serviu para frear o avanço da extrema-direita neste país, então encarnado pela figura do pinochetista José Antonio Katz, como reorganizou a correlação de forças em toda a América Latina.


A cerimônia de posse deste jovem político de 36 anos e membro do progressista Convergência Social (CS), realizada no último dia 11 de março, confirmou que os estallidos sociais que marcaram o Chile no final de 2019 não eram apenas um breve cenário de cólera popular que rapidamente daria lugar à tão conhecida “normalidade” chilena. As manifestações chegaram a levar mais de um milhão de pessoas às ruas das principais cidades do país, no que foram os maiores atos desde a ditadura de Augusto Pinochet, e foram inicialmente motivados por um aumento das passagens do metrô de Santiago. Pouco tempo antes, as tarifas de eletricidade haviam sido reajustadas em 10%.



Foto: Rodrigo Garrido/ Reuters


Ao longo dos meses, os protestos se tornaram maiores e mais violentos, especialmente após o governo de Sebastián Piñera decretar o estado de emergência e anunciar o envio das forças militares às ruas, algo que não ocorria desde a redemocratização, em 1990. As cenas de manifestantes sendo atingidos em seus rostos por disparos realizados pelos carabineros – e que resultaram em centenas de casos de lesão ocular irreversíveis – impressionaram o mundo pelo nível de brutalidade. Ao mesmo tempo, as origens da frustração popular se evidenciavam: o modelo neoliberal chileno levou à quase completa privatização dos serviços essenciais, como educação e saúde, o sistema de pensões herdado da época pinochetista mostrava seus efeitos nefastos e o aumento da inflação tornava o acesso a produtos e serviços básicos quase impossível para uma parcela significativa da população chilena.


Foi neste cenário que o ex-líder estudantil Gabriel Boric, cuja carreira política começara no contexto das manifestações de 2012, que exigiam um sistema de educação pública e gratuita, assumiu a liderança de um projeto político de renovação nacional, baseado principalmente na promessa de construir um estado de bem-estar social no Chile.


Chile polarizado


Esse Chile em convulsão experimentou uma das eleições presidenciais mais polarizadas de sua história. Por primeira vez, em décadas, o sistema político-partidário que resultou da transição democrática pós-Pinochet foi amplamente rechaçado pelo eleitorado, que concedeu quase 54% dos votos no primeiro turno para os dois candidatos que tinham pouca ou nenhuma relação com a Concertación de Michelle Bachelet ou com a Alianza por Chile de Sebastián Piñera. Os candidatos em questão eram justamente Boric e o pinochetista José Antonio Katz.


Enquanto Boric buscou aproximar a sua candidatura do centro político, afirmando que a transformação que buscava seria feita de maneira moderada ou mesmo realizando duras críticas aos governos da Venezuela, Cuba e Nicarágua, Katz representava uma extrema-direita que perdera a vergonha de sê-lo. Entre suas propostas, estava a construção de um fosso na fronteira ao norte do país para impedir os fluxos de imigração ilegal. Ao mesmo tempo, Katz afirmava-se contra o aborto, um admirador de figuras como Donald Trump e Jair Bolsonaro e chegou a conjecturar que, se estivesse vivo, Pinochet votaria por ele.


Nas eleições de primeiro turno, Katz obteve 27,91% dos votos, enquanto que Boric somou 25,83% dos votos válidos. A diferença entre os dois foi de apenas 146 mil votos. Muito embora esta diferença tenha se alargado no segundo turno, aumentando para quase um milhão de votos a favor de Boric, a verdade é que estas eleições retratam um país que ainda não superou a experiência dos protestos multitudinários de 2019 e que se encontra profundamente divido entre as ânsias por um futuro mais justo e igualitário e por um passado de suposta ordem e estabilidade.


O que esperar do governo Boric


Os presentes na Plaza de la Constitución, em frente ao Palácio de La Moneda, na ocasião da cerimônia de posse de Boric indicavam claramente qual é a base social do projeto de renovação da esquerda chilena: mulheres e homens jovens, famílias com crianças, representantes dos nove povos originários que conformam o país, adultos que ainda guardam o amargo das lembranças de um Chile sob a ditadura de Pinochet.


Na ocasião, também chamou atenção as características do novo conselho de Ministros e Ministras do Chile: são 14 mulheres e 10 homens, com destaque para a médica Itzca Siches, que, depois de uma importante atuação ao longo da emergência causada pela pandemia de Covid-19, assumiu como Ministra do Interior, o que a torna a primeira na linha sucessória da presidência chilena. Ademais, a indicação da socialista e neta de Salvador Allende, Maya Fernández Allende, para a posição de Ministra da Defesa é algo por si só carregado de simbolismo. Trata-se de um novo Chile, mais jovem e mais feminista, que não nega a sua história e que busca recuperar o legado de Allende.


Em reconhecimento de que alguns dos rastros de violência produzidos pelas manifestações multitudinárias de 2019 ainda não desapareceram, uma das primeiras ações de Boric como presidente empossado foi suspender as condenações promovidas com base na Lei de Segurança do Estado contra manifestantes que foram presos em outubro daquele ano. Da mesma maneira, o novo governo anunciou uma reparação para os pequenos e médios comerciantes que foram diretamente afetados durante os protestos, muitos deles eleitores de Katz.


O desafio de reunificar um país que, em realidade, se encontra profundidade dividido há décadas, é apenas uma das questões que Boric terá de enfrentar ao longo de seu mandato. Antes de tudo, é necessário reconhecer que uma parcela não desprezível dos votos obtidos por sua candidatura eram essencialmente anti-Kast. Em seguida, precisamos lembrar que as experiências recentes do Brasil com movimentos de renovação política, à esquerda e à direita, parecem indicar algum grau de dificuldade por parte das novas lideranças de operar em meio ao alto grau de conflitividade que atualmente caracteriza a política latino-americana. No caso do Chile, em especial, o novo governo terá que lidar com um legislativo fragmentado em vinte forças políticas.


Como destaca Luna (2021), outra dificuldade será a oposição que o governo Boric enfrentará em razão da miopia das elites econômicas chilenas, que parecem incapazes de perceber que podem existir alternativas entre o neoliberalismo pinochetista, que transformou o Chile em um dos países mais desiguais do mundo, e a centralização econômica da Coreia do Norte. Exemplo disso é o fato de que parte significativa do empresariado buscou agarrar-se à candidatura de Katz como se esta fosse uma “tábua de salvação” diante da desintegração de toda a institucionalidade construída pela redemocratização chilena.


Entre as demais batalhas, destaca-se a aprovação de uma nova Constituição chilena, que deverá ser feita em um cenário de persistência da polarização política no país. Ademais, Boric deverá rever a forma como se constituem as relações entre o Estado chileno e os povos originários, em especial os Mapuches, que insistem em sobreviver como nação e a reclamar seus direitos em um país que historicamente lhes nega o reconhecimento e o acesso às suas terras. Por fim, a questão econômica é muito sensível no Chile, uma vez que a economia do país foi fortemente atingida pelos impactos da pandemia. Em razão, disso o novo governo se comprometeu a aumentar o salário mínimo para 500 mil pesos chilenos (cerca de 3800 reais) até o final de seu mandato. Ainda assim, a crise fiscal, a crescente inflação já anterioremente citada e a proximidade da data em que devem ser encerrados os programas de ajuda social implementados durante a crise sanitária são preocupações atuais.


Com respeito às relações do Chile com seus pares da América Latina, Boric tem repetido que o país deve deixar de ver aos seus vizinhos com distância e rechaço, sempre buscando o aprofundamento de suas relações com potências extrarregionais. Neste sentido, o chileno já anunciou que a sua primeira viagem oficial será à Argentina, país com quem o Chile tem um histórico de hostilidades, disputas e tensões, e também já afirmou, em mais de uma ocasião, torcer pela vitória de Lula nas eleições brasileiras do próximo mês de outubro. Recentemente, o novo presidente chileno também recebeu o candidato de esquerda colombiano Gustavo Petro, que é o favorito nas eleições presidenciais que devem ocorrer em maio na Colômbia.


Boric ainda fez uma série de críticas aos arranjos de integração ou de cooperação que, segundo ele, se orientam puramente por ideologia, como seria o caso do Foro para o Progresso da América do Sul (PROSUL) e do Grupo de Lima, e afirmou que o Chile vai apoiar os esforços que visam o fortalecimento de instituições como a Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC) e a Aliança do Pacífico.


Assim, Boric chega ao poder como uma esperança para uma parcela da população chilena e como um ator de enorme relevância para a reconfiguração das alianças e dos mecanismos de integração da América Latina. No entanto, a capacidade do novo governo de produzir as transformações que promete depende de elementos mais complexos do que apenas a vontade política do novo mandatário. Ainda assim, não custa lembrar que o poder concedido à Boric pelas urnas vem acompanhado de uma enorme responsabilidade: frustrar estas expectativas pode significar mais um golpe sobre um povo já tão cansado de ser golpeado.


Referências

BORIC, Gabriel. Propuestas para un nuevo Chile: cambios para vivir mejor. S.d. Disponível em: https://boricpresidente.cl/propuestas/.

LUNA, Juan P. Qué le espera a Gabriel Boric? Nueva Sociedad, dez.2021. Disponível em: https://www.nuso.org/articulo/boric-ante-el-desafio-del-nuevo-chile/.

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