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Foto do escritor Mayra Coan Lago

Cúpula das Américas: a integração americana fora de sintonia?


Ao longo desta semana ocorrerá, em Los Angeles, a IX Cúpula das Américas, um evento que reúne altos funcionários dos governos (chefes de Estado e de governo, Ministros de Relações Exteriores, entre outros) e parte da sociedade civil dos países da América do Norte, América do Sul, América Central e do Caribe a cada três anos, e que tem como objetivo discutir temas de interesse hemisférico. O encontro é parte das atividades desenvolvidas no âmbito da Organização dos Estados Americanos (OEA), cuja origem remonta às Conferências Pan-Americanas, que começaram a ocorrer no final do século XIX (DULCI, 2013; NEPOMUCENO, 2015). A criação da OEA foi anunciada na Nona Conferência Internacional Americana, reunida em Bogotá, em 1948.


A Cúpula das Américas


A primeira Cúpula das Américas foi convocada pelo presidente norte-americano Bill Clinton, em dezembro de 1994, na Flórida, dando continuidade à “Iniciativa para as Américas”, procurando reafirmar a América Latina como sua zona de influência e propiciando um espaço em que Chefes de Estado e de Governo dos países-membros da OEA pudessem tratar de temas de interesse comum, com especial atenção para a proposta da Área de Livre-Comércio das Américas (ALCA). Posteriormente, sete Cúpulas ocorreram, a saber: Santiago do Chile, Chile (1998); Quebec, Canadá (2001); Mar del Plata, Argentina (2005); Puerto España, Trinidad e Tobago (2009); Cartagena, Colômbia (2012); Cidade do Panamá, Panamá (2015); e Lima, Peru (2018). Além destas, ocorreram Cúpulas especiais em Santa Cruz de la Sierra, Bolívia (1996) e em Monterrey, México (2004).


As tensões e as polêmicas entre os Estados Unidos e alguns países do continente constituem a história das relações interamericanas, em geral, e da Organização dos Estados Americanos e das Cúpulas, em particular. Isto porque estas instituições estão profundamente marcadas pelas distintas percepções acerca do “modelo” de integração hemisférica, pelas variadas tentativas do vizinho do norte em dirigir iniciativas de integração regional, subordinando os demais países, e/ou pelas intervenções norte-americanas em questões domésticas dos países latino-americanos. No âmbito das Cúpulas das Américas, entre as questões com maiores entraves nos últimos vinte e oito anos, figuraram a oposição latino-americana à criação da ALCA, posições contrárias entre os países sobre o retorno de Cuba à OEA e sobre as sanções impostas pelos Estados Unidos à Venezuela.


Movimentos sociais e partidos de esquerda manifestando-se contra a criação da ALCA em Mar del Plata, em 2005. Fonte: Brasil de Fato.


A desintegração americana


Mais recentemente, os últimos encontros também demonstraram que a integração das Américas não está passando por um bom momento. Por falta de consenso entre os países americanos, a VII Cúpula, ocorrida em 2015, terminou sem uma declaração conjunta no final do evento, algo que também ocorreu nas V e VI Cúpulas, realizadas em Trinidad e Tobago e na Colômbia, em 2009 e 2012, respectivamente. Em 2018, a VIII Cúpula foi marcada pelas ausências dos presidentes venezuelano, Nicolás Maduro, e norte-americano, Donald Trump. No primeiro caso, por Maduro ter sido impedido de participar. No segundo caso, pelo ataque da coalizão formada por Estados Unidos, Reino Unido e França contra as cidades sírias de Damasco e Homs, que concentrava os esforços da Secretaria de Estado.


A despeito da justificativa, a ausência do então presidente norte-americano reforçou, por um lado, o desinteresse dos Estados Unidos pela região, que foi aprofundado durante todo o governo de Trump, em contraste com o crescente interesse norte-americano pelo Oriente Médio e pela Ásia nas últimas décadas.


Embora a IX Cúpula esteja ocorrendo durante o governo de Joe Biden, que procura demarcar as particularidades da sua política externa em relação ao seu antecessor, as suas ações no âmbito internacional, sobretudo em outras áreas do globo (Afeganistão e Ucrânia), revelam que o desinteresse pela América Latina permanece. A exceção ao desinteresse pela região está nos temas corriqueiros da segurança doméstica dos Estados Unidos, como a questão migratória e do crime organizado, que envolvem a cooperação com o México, os países do Triângulo Norte da América Central e a Colômbia. Maiores manifestações recentes da “solidariedade americana” também podem ser notadas em tempos de crise e de sensação de ameaça à sua zona de influência por potências externas ao hemisfério, como a China e a Rússia, especialmente durante a guerra da Ucrânia.


Ausências e fricções políticas


A IX Cúpula está inserida em um contexto marcado por grandes crises internacionais, como a pandemia de Covid-19 e a Guerra da Ucrânia, e seus distintos desdobramentos na região. Estes eventos agravaram o cenário desigual dos e entre os países americanos e revelam a importância de os desafios comuns serem tratados de maneira conjunta pelos países do hemisfério em diferentes espaços.


A despeito do que foi mencionado, as notícias em diversos jornais e portais informativos das últimas semanas que antecederam a IX Cúpula revelam que isto não ocorrerá. A repercussão ocorreu devido às sinalizações de que o anfitrião da reunião, os Estados Unidos, não convidaria Cuba, Nicarágua e Venezuela para o evento pela “falta de compromisso com a democracia”, exclusão que foi confirmada no último domingo (05/06).


Segundo os EUA, as prisões de manifestantes opositores recentemente ocorridas em Cuba são uma brutal violação dos direitos humanos. Da mesma forma, a gestão de Biden tem denunciado o que considera uma perseguição por parte do governo nicaraguense de Daniel Ortega contra rivais e opositores. O venezuelano Nicolás Maduro, por sua vez, não é reconhecido pelos EUA como legítimo presidente do país sul-americano em razão de alegadas irregularidades nos processos eleitorais recentes.


Após as sinalizações, além dos governantes dos países que ficaram excluídos da IX Cúpula, outros da região manifestaram seu descontentamento com esta atitude e ponderaram sobre a sua ausência no evento, como o presidente boliviano Luis Arce e o mexicano Andrés Manuel López Obrador.


López Obrador já havia afirmado há semanas a sua intenção de não comparecer a esta edição da Cúpula das Américas, a menos que o convite feito pela administração Biden se estendesse a todos os demais chefes de Estado da região. Segundo ele, é urgente que alteremos a política dos EUA para a América Latina, que vem há séculos pautando-se no intervencionismo e no desrespeito às soberanias dos países vizinhos. Diante da resistência da Casa Branca, Obrador oficializou a sua decisão e anunciou, durante o evento, viajará à Oaxaca para atender à população desta região, que acaba de sofrer com a passagem do furacão Ágatha, que deixou 9 mortos e 4 desaparecidos.


Desde que chegou ao poder, em 2018, López Obrador tem assumindo a posição de principal liderança de uma América Latina fragmentada e esvaziada de mínimos denominadores comuns. Em razão disso, a sua posição a respeito da Cúpula das Américas rapidamente fez eco na região e diversas outras lideranças passaram a colocar em questão a sua presença no evento. Exemplo disso foi Honduras, país governado por Xiomara Castro, quem anunciou que enviará seu Ministro de Relações Exteriores a Los Angeles. O mesmo fará o presidente da Guatemala, Alejandro Giammattei, quem afirmou nesta segunda-feira (06/06) que se ausentará da reunião em razão de compromissos em sua agenda interna. Entre os compromissos, encontra-se uma viagem a Jutiapa, departamento com cerca de 400 mil habitantes, para o relançamento do Programa Adulto Mayor, política social de 2005 destinada a pessoas idosas em situação de vulnerabilidade social.


Na América do Sul, a presença do chileno Gabriel Boric e do argentino Alberto Fernández também se tornou uma incógnita por semanas e foi confirmada apenas nos últimos dias. A participação de Jair Bolsonaro como representante do Brasil também era incerta, já que as relações entre ele e Joe Biden são quase que inexistentes. No final, Bolsonaro decidiu confirmar sua presença após o aceite por parte do mandatário norte-americano de reunir-se com o brasileiro para um encontro bilateral em que se deve discutir, dentre outras coisas, a questão do 5G chinês.


Como já destacado anteriormente, o presidente boliviano Luis Arce, por sua vez, logo de reunir-se com os representantes dos países “irmãos” excluídos da IX Cúpula das Américas, anunciou que tampouco pretende viajar a Los Angeles. Segundo ele, uma Cúpula das Américas que exclua a países americanos não pode ser uma Cúpula das Américas plena.


A ALBA como uma “contra-Cúpula das Américas”


Enquanto o debate em torno da presença de Cuba, Venezuela e Nicarágua na Cúpula das Américas encontrava-se interditado nos EUA por pressões tanto de setores do Partido Republicano quanto de frações do Partido Democrata, estes países latino-americanos decidiram reunir-se com seus aliados, entre eles a Bolívia de Luis Arce, em Havana, por ocasião da XXI Cúpula da Aliança Bolivariana para os Povos de Nossa América (ALBA).


A ALBA nasceu em 2005 a partir da iniciativa venezuelana de contrapor o projeto norte-americano de criação de uma área de livre comércio de caráter continental, a ALCA. Por esta razão, o bloco atualmente integrado por Venezuela, Cuba, Nicarágua, Bolívia, Dominica, Antigua e Barbuda e São Vicente e Granadinas surgiu inicialmente com o nome de Alternativa Bolivariana para os Povos de Nossa América.


Foto oficial da XXI Cúpula da Aliança Bolivariana dos Povos da Nossa América (ALBA), ocorrida em Havana, em 27 de maio de 2022.


Diferente dos arranjos típicos da integração capitaneada pelos EUA, quase sempre muito centrados em aspectos de liberalização econômica, a ALBA se propõe como um espaço de cooperação para o desenvolvimento, de complementariedade e de solidariedade, com forte ênfase na instrumentalização do comércio como ferramenta de combate à pobreza e à exclusão social (ROSERO & BLANDÓN, 2014).


A XXI Cúpula da ALBA teve como principal discussão a exclusão de alguns de seus membros da IX Cúpula das Américas. Como resposta, o presidente cubano Miguel Díaz-Canel afirmou que, no que pese à melhora do diálogo da ilha caribenha com os EUA de Joe Biden, principalmente em temas relacionados à migração, não viajaria a Los Angeles ainda que fosse convidado para o evento. O venezuelano Nicolás Maduro, por sua vez, aproveitou para agradecer a solidariedade de López Obrador e de Alberto Fernández.


O boicote de diversos países da região à IX Cúpula das Américas ou os discursos enfáticos dos presidentes de países da ALBA não serão capazes, evidentemente, de impedir a realização do evento que ocorrerá em Los Angeles entre os dias 06 e 10 de junho. No entanto, esta articulação se mostrou vitoriosa em muitos sentidos: a polêmica em torno das ausências monopolizou toda a discussão sobre a Cúpula, de modo que a discussão sobre os temas que lá serão debatidos ficou em segundo plano. Ao mesmo tempo, o evento, que tinha como principal objetivo fortalecer a influência dos EUA na região, em um momento em que seus interesses são confrontados por outros players globais, serviu apenas para evidenciar o quão questionada se encontra a liderança americana na América Latina.


Conclusão


O processo de esvaziamento dos mecanismos do multilateralismo hemisférico é algo evidente desde o final dos anos 1990. Mesmo países historicamente mais alinhados à política continental dos EUA, como a Colômbia e o Chile, experimentam processos de mudança política relevantes que, dentre outras coisas, os encaminha para uma inserção internacional notadamente mais universalista. Da mesma forma, o novo ciclo de governos progressistas da América Latina, com destaque para o México, a Argentina e, eventualmente, o Brasil, tem o potencial de servir para enfraquecer ainda mais os instrumentos de influência política dos EUA sobre a região.


Ao mesmo tempo, a crise da Cúpula das Américas é o resultado da própria crise de liderança dos EUA no continente e esta se deve às próprias escolhas estratégicas feitas pelos últimos governos americanos. Exemplos disso foram a forma desrespeitosa com que a administração Trump tratou a muitos dos seus vizinhos, em especial o México e as nações centro-americanas, ou a postura pouco solidária do governo americano durante a pandemia de Covid-19. Mesmo atualmente, quando a América Latina ainda padece dos impactos da crise sanitária, aos quais se somaram os impactos da invasão russa à Ucrânia, os EUA parecem ter muito pouco a oferecer à região em termos de cooperação para qualquer matéria que não seja a da securitização das drogas ou a da contensão dos fluxos migratórios ou, ainda, a do isolamento dos países “bolivarianos”.


A América Latina não foi uma prioridade na agenda internacional da administração Trump e tampouco o é na agenda internacional da administração Biden. Os boicotes e o esvaziamento da IX Cúpula das Américas são apenas a face visível de um problema muito mais profundo.



Referências Bibliográficas


DULCI, Tereza Maria Spyer. As Conferências Pan-Americanas (1889-1928). Identidades, união aduaneira e arbitragem. São Paulo: Alameda Casa Editorial, 2013.


NEPOMUCENO, Maria Margarida Cintra. A missão cultural brasileira no Uruguai: a construção de um modelo de diplomacia cultural do Brasil na América Latina (1930-1945). 2015. Tese (Doutorado em Integração da América Latina) - Integração da América Latina, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015.


ROSERO, Luis Fernando Trejos; BLANDÓN, Melissa Johanna Peláez. Alianza Bolivariana para los Pueblos de Nuestra América – Tratado de Comercio de los Pueblos (ALBA-TCP): un nuevo modelo de integración regional. Justicia, n.26, jul-dez.2014, pp.26-43.


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