Na Cúpula das Américas Alberto Fernández lembra Sáenz Peña e desafia EUA
Foto: EFE/ Presidência da Argentina
Pouco ou quase nada adiantou a determinação dos EUA de não convidar Cuba, Nicarágua e Venezuela para participarem da Cúpula das Américas, encontro promovido pela OEA- Organização dos Países Americanos-, em Los Ángeles finalizada dia 10 de junho. Outros países se somaram a essas ausências em solidariedade aos três países, tais como México, Bolívia, Equador e El Salvador, aumentando ainda mais o vácuo de representações nacionais e agravando o clima de intolerância explícita de seu anfitrião.
Alberto Fernández, presidente da Argentina, centrou seu discurso na crítica à ordem global, ao governo Trump, às mudanças climáticas, e, especialmente, às dificuldades de convivência dentro de um sistema multilateral, onde muitos decidem e, sobretudo, na ausência de visão e a intolerância ao convívio com as diferenças. A postura combativa e até surpreendente do presidente Fernández remeteu-nos há algumas dezenas de anos, mais especificamente a 1889, quando o embaixador da Argentina na época, Roque Sáenz Peña, durante uma assembleia entre países latino-americanos, em Washington, se contrapôs à proeminente geopolítica norte-americana, afirmando em seu primeiro discurso como representante do país: “A América para a humanidade”, em confronto declarado à máxima da Doutrina Monroe “A América para os americanos”.
O discurso anti-hegemônico do então embaixador, depois presidente argentino (1910-1914) frontalmente contra o expansionismo norte-americano, durante aquela primeira Conferência Panamericana,[1] marcou profundamente uma geração de políticos e intelectuais da América Latina que buscavam uma intercooperação entre as recém fundadas repúblicas e o impacto de suas palavras repercutiu amplamente no mundo através dos jornais. O historiador peruano Evaristo San Cristoval, do Instituto Histórico do Peru, declarou:
(...) por muchos días las frases de Saénz Peña estuvieron sobre el tapete, y que ellas dieron ocasión a que en el concierto de la prensa mundial, se le juzgase como debía, destacando a su autor que había dicho lo que pensaba sin disimulos ni reticencias, enfrentando gallardamente su parecer, traducido en una doctrina amplia y liberal, contrapuesta en todo a la de Monroe, limitada y estrecha (SAN CRISTOVAL, s/d, p. 9).[2]
Em seu libro, Brasil, Argentina e Estados Unidos. Conflito e Integração na América Latina da Tríplice Aliança ao Mercosul, Luiz Alberto Muniz Bandeira apresenta uma carta escrita por Sáenz Peña a Vicente Casero, presidente do Partido Autonomista Nacional (Bandeira,2010:126) onde ele reafirma: “Estado alguno americano tiene el derecho de hablar en nombre del hemisfério”, acrescentando que ele não reconhecia a chancelaria do Novo Mundo.
Independente das relações de alinhamento político e econômico da Argentina com a Grã-Bretanha, o que lhe valeu o qualificativo de “europeísta” naquele momento, ficaram estabelecidas a partir dessa primeira assembleia, as diferentes visões sobre os processos de cooperação entre os países da região e os EUA.[3] De um lado, os pan-americanistas, mais alinhados aos EUA e de outro, os latino-americanistas, que conforme nos esclarece o historiador Claudio Villafãne Santos (2004) e Tereza Maria Dulcci (2013), denominava-se ao conjunto de países com proposições mais independentes de desenvolvimento. Na 2ª Conferência de Paz, ocorrida em Haya, ainda segundo Bandeira, Sáenz Peña reforça sua posição declarando: “ (...)la política argentina no es americana ni europea, porque ella es universal y se nutre de contactos y armonias com todos los pueblos civilizados de la tierra” (2010:146).
As Conferências foram uma criação norte-americana de criar uma zona de influência direta nas Américas, com o intuito de estabelecer laços políticos e comerciais. Apesar da sede administrativa, a União Panamericana, localizar-se em Washington e de lá partirem as agendas de discussão entre os países bem como os encaminhamentos administrativos posteriores às resoluções tomadas, as conferências ocorreram em ambientes entre: as políticas de alinhamento e cooperação e os embates e disputas ideológicas e polêmicas políticas.
Cento e trinta e três anos se passaram desse episódio e a Argentina volta a confrontar-se com os EUA e a OEA, em sua configuração atual, revelando que as antigas práticas ainda persistem e que são igualmente prejudiciais para o conjunto da América Latina. O fato de ser anfitrião, para Fernández, não daria o direito ao presidente Biden de excluir os membros da região. Como presidente pró tempore da CELAC, Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos, Alberto Fernández disse conviver com a diversidade, com posições antagônicas, mas com respeito. A exclusão dos países citados, para o presidente, é parte de uma política de reação aos países que vem lutando contra as políticas neoliberais e as medidas que buscam punir esses governos, punem, em verdade, as populações relegando-as ao empobrecimento que só se agravou com a pandemia. “ El diálogo en la diversidade es el mejor instrumento para promover la democracia, la modernización y la lucha contra la desigualdade”. E o recado foi direto para o presidente Biden:
“Presidente Biden. Estoy seguro de que es momento de abrirse de modo fraterno em pos de favorecer interesses comunes. Los años prévios a su llegada al Gobierno de los Estados Unidos de América, estuvieran signados por una política imensamente dañina para nuestra región (...)”.
E como exemplo, denunciou o apoio ao golpe da Bolívia, à continuidade das 6 décadas de sansões à Cuba, o endividamento dos países com as diretrizes do FMI no governo Trump, entre outras questões.
O cenário da pandemia não poderia deixar de ser analisado pelo presidente que propôs aos demais membros a formação de uma Associação Estratégica Comum com dois grandes objetivos: “organicemos continentalmente la producción de alimentos y proteínas y desarrollemos nuestro enorme potencial energético y de minerales críticos para la transición ecológica”.
E justifica:
“Ante tanta desigualdade, debemos plantear la necesidad de políticas impositivas progresivas, aun quando las élites domésticas nos presenten como un peligro para la calidad democrática. La renta inesperada de la guerra entrego como un regalo a grandes corporaciones alimentícias, petroleiras y armamentisticas deve ser grabada para mejorar la distribuición del ingresso”.
Criticou com bastante veemência a organização a OEA, defendendo que “se a instituição quer ser respeitada e voltar a ser uma plataforma política regional para a qual foi criada, deve ser estruturada removendo de imediato sua direção”.
Para ele, a opção que se tem para a América Latina são duas: Unidos por “la casa común” o dominados pela codícia econômica.
Ouça ou leia o discurso completo do presidente Alberto Fernández em www.tiempoar.com.ar (publicado em 9/06/2022)
[1] assembleias periódicas que reuniam os paí ses da América antes da criação da OEA (1948),
[2] Presumivelmente, esse texto foi escrito entre os anos 1940 e 1950, como as demais biografias de militares do autor.
[3] Em pesquisa realizada para o doutorado no Programa de Graduação Integração da América Latina da Universidade de São Paulo, essas questões foram analisadas e resultaram na tese defendida: (...). Esse artigo é baseado nessa pesquisa. Ver tese completa: A missão cultural brasileira no Uruguai: a construção de um modelo de diplomacia cultural do Brasil na América Latina (1930-1945).
https://teses.usp.br/teses/disponiveis/84/84131/tde-13092016-142012/pt-br.php
Commentaires