Como foi amplamente noticiado, na última semana ocorreu, em Los Angeles, a nona edição da Cúpula das Américas, evento que reúne os chefes de Estado das 36 nações americanas desde 1994. No entanto, diferente de outras edições, quando o foco estava posto sobre a agenda concreta a ser debatida (a agenda da liberalização comercial ou a da guerra ao terror, por exemplo), a deste ano foi mais comentada em razão de suas polêmicas.
Afinal, os EUA decidiram excluir do evento a Cuba, Venezuela e Nicarágua, alegando que estes países não apresentam forte compromisso com a democracia. Em seguida, como reação, mais de uma dezena de líderes latino-americanos colocaram em questão a sua ida à Los Angeles. Como resultado, apenas 23 chefes de Estado prestigiaram o evento, número muito abaixo dos 34 que haviam estado presentes na última cúpula, realizada em Lima, em 2018.
A defesa da democracia foi um dos temas mais destacados pelo país anfitrião, os EUA. Já na abertura do evento, Biden refletiu sobre os riscos e os ataques a que a democracia está submetida atualmente em todo o mundo e sobre como a renovação da mesma é fundamental para o futuro do continente.
Finalizado o discurso de abertura, no entanto, ficou evidente a existência de um enorme abismo entre os interesses e as posições dos EUA e da América Latina.
Uma “nova relação” entre América Latina e EUA
Se, por um lado, países como Panamá e Paraguai asseguraram seu compromisso com as agendas apresentadas pelos EUA, por outro o que mais se ouviu nos discursos dos líderes e dos chanceleres latino-americanos foi a defesa de uma nova relação entre a América Latina e a potência vizinha. Esta nova relação deveria ser pautada na cooperação e nos interesses mútuos, em lugar da tradicional ingerência estadunidense em temas de política doméstica da região.
O secretário de Relações Exteriores do México, Marcelo Ebrard, que esteve em Los Angeles representando o presidente Andrés Manuel López Obrador, defendeu, ademais, uma reforma da Organização dos Estados Americanos (OEA), o fim do embargo contra Cuba e a garanta da presença de todos os Estados do continente nas próximas edições do evento. Do contrário, o processo de esvaziamento do regionalismo continental tende a se aprofundar, segundo o mexicano.
O mandatário argentino Alberto Fernández, por sua vez, fez coro a Ebrard ao criticar a exclusão de Cuba, Venezuela e Nicarágua e os embargos econômicos impostos por Washington contra Cuba e Venezuela. Em discurso bastante duro, Fernández ainda afirmou que o fato de os EUA serem o país anfitrião do evento não lhe garante qualquer direito de escolher quem será admitido ou não em uma cúpula que pertence a todos os países membros do continente. Ainda segundo ele, a melhor forma de se combater a desigualdade e de se defender a democracia é a partir da promoção e do respeito à diversidade e ao diálogo.
Brasil e Biden: das hostilidades ao “encantamento”
A ausência do México, país que é o principal sócio econômico dos EUA na América Latina e com quem a Casa Branca busca aprofundar acordos relacionados à agenda da migração, e a ameaça de que o gesto fosse repetido pela Argentina fizeram com que os EUA buscassem garantir a presença do Brasil, de modo a evitar o completo esvaziamento do evento. Bolsonaro, no entanto, vinha se mostrando reticente a confirmar sua ida a Los Angeles, temendo os constrangimentos que discussões sobre a agenda ambiental ou sobre seus ataques ao sistema eleitoral brasileiro poderiam causar.
Com respeito às relações entre a administração Biden e a gestão Bolsonaro, é preciso lembrar que elas estiveram permanentemente caracterizadas por uma certa hostilidade. Ainda enquanto candidato democrata à posição de presidente da república, em setembro de 2020, Biden fez referência ao aumento das queimadas na Amazônia brasileira e prometeu que, se eleito, lideraria uma coalizão internacional que ofereceria ao Brasil US$ 20 bilhões como ajuda para a preservação destas florestas. Em seguida, o democrata afirmou que, em caso de que ainda assim a destruição ambiental prosseguisse, aplicaria sanções econômicas contra o Brasil.
Meses depois, em janeiro de 2021, Bolsonaro, que havia mantido relações muito próximas com o ex-presidente Donald Trump, passou a reproduzir as narrativas da extrema-direita estadunidense e a desacreditar o processo eleitoral do qual Biden resultara vencedor. De fato, Bolsonaro foi o último presidente do G-20, grupo formado pelas 20 maiores economias do mundo, a parabenizar Biden, o que terminou fazendo através de uma publicação em seu Twitter apenas após o Colégio Eleitoral dos EUA referendar a vitória do democrata.
Bolsonaro terminou por confirmar sua presença no evento após exigir como contrapartida a realização de uma reunião bilateral com o governo dos EUA. Em um ano eleitoral, presidente brasileiro poderia fazer amplo uso de suas imagens ao lado de Biden e alimentar a narrativa de que não apenas não se encontra isolado internacionalmente, mas que a presença do Brasil teria sido fundamental para “salvar” a Cúpula das Américas.
Finalizado o encontro bilateral, ocorrido às margens da Cúpula de Los Angeles, no entanto, Bolsonaro surpreendeu ao afirmar-se “maravilhado” com Biden e ao dizer que a reunião havia sido “melhor do que ele esperava”. Na ocasião, Bolsonaro afirmou ainda que o fortalecimento do eixo Norte-Sul é bom pra todos e que ele e Biden compartilham de uma mesma percepção a respeito de temas como a agenda de preservação ambiental do governo brasileiro, a questão da recuperação econômica e a defesa da democracia e da liberdade.
Embora Bolsonaro tenha afirmado durante o evento que deixará o governo de forma democrática caso não seja reeleito, o presidente brasileiro não tardou a retomar seus já tradicionais ataques às instituições eleitorais. Em seguida, a agência de notícias Bloomberg passou a noticiar que, segundo fontes da diplomacia estadunidense, Bolsonaro teria pedido a ajuda de Biden para vencer o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva na disputa presidencial prevista para outubro deste ano. Segundo a Bloomberg, o atual mandatário brasileiro teria descrito Lula como um perigo para os interesses dos EUA. A informação, embora rapidamente negada por Bolsonaro, foi confirmada por fontes da diplomacia brasileira.
A questão da China
Um dos principais objetivos dos EUA nesta Cúpula das Américas era o de fortalecer a influência deste país junto à América Latina, como forma de conter a crescente presença da China na região.
Segundo dados da ONU sobre intercâmbio comercial analisados pela Reuters, a China ultrapassou os EUA em toda a América Latina, com exceção do México. Este processo remonta ao início dos anos 2000, mas ganhou especial força entre 2015 e 2021, período em que Pequim se converteu na principal compradora dos grãos, metais e minérios oferecidos pelos países da região. Apenas em 2021, os fluxos comerciais totais entre a América Latina e a China (excluído o México) chegaram a quase US$ 247 bilhões, enquanto que as trocas da região (novamente excluindo o México) com os EUA totalizaram o valor de US$ 174 bilhões no mesmo período.
Em razão disso, a administração Biden vinha sinalizando que utilizaria a Cúpula das Américas para anunciar a “Parceria das Américas para a Prosperidade Econômica”, uma parceria econômica com o fim de auxiliar na recuperação pós-crise sanitária dos países do hemisfério. O plano, que deve tomar como base acordos de livre comércio pré-existentes entre os EUA e a América Latina e que foi anunciado no discurso inaugural do evento, engloba cinco áreas: mobilização de investimentos (especialmente através do Banco Interamericano de Desenvolvimento, o BID), revigoramento das instituições, criação de empregos em setores de energia limpa, criação de cadeias de suprimentos resilientes e a promoção do comércio sustentável.
Ademais, Biden destacou uma nova colaboração protagonizada por EUA, Canadá, México, Brasil, Argentina e Chile, os maiores exportadores de alimentos do hemisfério, com o fim de incrementar a produção de alimentos para a exportação.
A iniciativa, no entanto, depende da aprovação de um parlamento estadunidense que se prepara para as chamadas Midterms, as eleições legislativas de meio de mandato que ocorrem dois anos após a eleição presidencial e que estão previstas para acontecer em novembro de 2022. A perspectiva é que o partido Republicano conquiste a maioria dos assentos em ambas as casas, o que pode tornar os planos de Biden mais difíceis.
Conclusão: o que se pode esperar do regionalismo hemisférico?
A IX Cúpula das Américas se provou um inegável reflexo do atual momento da integração regional hemisférica e da crise de liderança dos EUA. Apesar dos esforços da administração Biden no sentido de garantir ao evento alguma relevância, a verdade é que muito pouco se avançou nas discussões das agendas prioritárias para a Casa Branca e para os demais países da região.
Exemplo disso foi o Pacto Migratório, tão importante para os EUA em um ano eleitoral e tão secundário para uma região que viu sua população ser constantemente insultada pela administração anterior, de Donald Trump. Esforço colaborativo de vigilância das fronteiras e de controle migratório, especialmente no chamado “triângulo norte”, o Pacto Migratório deveria servir como nova ferramenta de contenção dos fluxos migratórios ilegais em direção aos EUA, mas a proposta se viu fortemente enfraquecida diante da ausência de países essenciais para esta agenda, como México, Guatemala, El Salvador e Honduras.
O tema da migração era tão central na Cúpula que deu nome ao documento firmado por 20 países no último dia do evento: Declaração de Los Angeles sobre Migração e Proteção. A declaração traz uma série de compromissos pouco definidos e a promessa por parte dos EUA de uma doação de pouco mais de US$ 300 milhões destinada aos imigrantes venezuelanos e aos demais imigrantes em situação de vulnerabilidade no continente, com o fim de financiar iniciativas de assistência humanitária, sanitária e econômica a elas dirigidas.
Os discursos de Biden em defesa da democracia, por sua vez, perderam força ao virem acompanhados da divulgação, por parte dos meios de comunicação estadunidenses, de uma visita oficial que o mandatário deste país fará a ninguém menos que Mohammad bin Salman, príncipe herdeiro da Arábia Saudita. Bin Salman é apontado como o responsável pela morte do jornalista Jamal Khashoggi em um consulado saudita na Turquia, em 2018. A viagem ocorrerá entre os dias 13 e 16 de julho e incluirá também uma passagem por Israel – ocasião em que Biden deve visitar os territórios ocupados da Cisjordânia.
Por fim, a agenda ambiental foi outro tema que ganhou enorme destaque ao longo da cúpula. Já na abertura, Biden anunciou uma iniciativa criada em cooperação com outras nações americanas para abordar a crise climática e que seria liderada pela vice-presidente dos EUA, Kamala Harris. A ideia é fomentar o desenvolvimento e a implementação de energias renováveis, fortalecendo este setor e produzindo milhares de novos postos de trabalho, o que também ajudaria a resolver uma das causas da crise migratória.
À América Latina, no entanto, interessava muito mais as discussões sobre cooperação econômica, mas os líderes presentes retornaram aos seus países levando consigo apenas uma série de promessas que serão difíceis de cumprir caso o partido Democrata seja derrotado nas eleições de meio de mandato e perca a maioria dos assentos na Câmara dos Deputados.
A perda de influência dos EUA na América Latina parece agora difícil de ser revertida. Afinal, enquanto abundam os investimentos e os dólares obtidos através das volumosas trocas comerciais da região com a China, os EUA de Biden mostram-se incapazes de oferecer à região uma agenda que não seja puramente pautada nos interesses egoísticos deste país.
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