A tentativa de destruição das Mulatas de Di Cavalcanti, remetem às muitas outras obras já destruídas pelos regimes autoritários em outros países, em outros tempos.
Pedreiros bolivianos interrompem obra de demolição ao encontrarem escombros de um mural executado de Miguel Pantoja em local onde funcionava um campo de mineiros, ao lado de uma represa. Foi transladado para recuperação. (Rudy Guarachi, set. 2017)
O artista boliviano Miguel Alendia Pantoja (1914-1975) é considerado um dos grandes muralistas do Modernismo ao lado dos mexicanos Diego, Orozco e Siqueiros, e como eles, registrou a história da Bolívia, suas tradições pré-hispânicas e as lutas sociais através de seus gigantescos murais ( alguns com até 162 m2). Deixou como legado para a História da Arte Universal dezenas de murais e pinturas de cavalete espalhados pelo país.
Foi um cronista das lutas sociais e anti-imperialistas bolivianas criando verdadeiros livros abertos ao público sobre as revoltas dos mineiros e indígenas além de registrar, como testemunha ativa, a Guerra do Chaco contra o Paraguai (1932-1935) e a Revolução de 1952. Um artista ativista: trocou várias vezes os pinceis por armas!
Miguel Pantoja. La Educación, 1964. Mural. Foto CCACR
Até uma parte de sua vida podemos fazer paralelos aos muralistas mexicanos: participou igualmente de um processo de educação pública e social, incentivando com seus murais a formação da população durante os governos socialistas.
Morreu no exílio, no Peru, mas as pessoas não o esquecem muito embora os regimes autoritários pós 1964 (René Barrientos, 1964-1969, e Hugo Banzer, 1971-1978) tenham feito o possível para apagar seus feitos e memória de sua luta. Logo que tomou posse, a junta militar sob o comando de René Barrientos mandou destruir inúmeros murais de Pantoja, especialmente os que estavam nas instituições públicas: no palácio presidencial e na Casa Legislativa e no Museu Nacional da Revolução onde se encontravam vários murais de Pantoja.
Um a um foram sendo destruídos com golpes de picaretas ou cobertos com tinta “com a mesma violência com que eliminaram centenas de dirigentes políticos dos sindicatos e partidos opositores à ditadura” [Everaldo Andrade. História, arte e política (...)].
A História é longa e vale a pena saber!
Me dispus a contar parte dela diante dos fatos estarrecedores do 8 de janeiro e da destruição do mural de Di Cavalcanti. Exemplo triste dos grupos autoritários que aqui ou acolá atuam, nesse e em outros tempos, expelindo o fogo do desprezo pela arte e pela cultura pois sabem o poder que possuem para despertar a sensibilidade, a observação cuidadosa e a consciência. O povo boliviano conseguiu a duras penas e com o apoio da UNESCO reaver algumas pinturas de Pantoja. Após quase 40 anos, em 2003, no Museu de La Paz, foram expostas obras restauradas do artista.
“As Mulatas” também voltarão...naquele mesmo espaço, pois são importantes para criar um tempo de reflexão entre tantas tensões políticas.
A grande qualidade dos murais, quando públicos e acessíveis, não se restringe a sua dimensão física nem tão somente o seu valor de mercado, mas a capacidade de incorporar à paisagem/narrativa criadas os transeuntes desatentos ou desinteressados, enfim, aqueles que não buscam a arte transformando-os em personagem da obra. Na verdade, os murais se completam na presença do outro, pelas relações de identidade que estabelecem com o público ou através das conexões com o imaginário criado pelo artista.
Referências:
Andrade, Everaldo. História, Arte e Política. (...)
https://arskriterion.blogspot.com/2020/11/modernismo-boliviano-mimesis-y-drama.html
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