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Foto do escritorFabiana de Oliveira

A Colômbia enfrenta os seus fantasmas: reflexões sobre o relatório da Comissão da Verdade


Foto: Casa de América


Entre 1958 e 2016, a Colômbia encontrou-se imersa em um conflito armado que custou ao país centenas de milhares de vidas. A guerra, que atingiu, de maneira direta ou indireta, a todos os setores da sociedade colombiana e que envolveu as forças do Estado, as guerrilhas e os grupos paramilitares, resultou em um enorme ressentimento nacional.


Exemplo da força deste ressentimento foram os resultados do plebiscito sobre os acordos de paz, ocorrido em 2016. Nesta ocasião, os colombianos foram convidados a referendar - ou não - os acordos de paz firmados entre o Estado colombiano, então sob o governo de Juan Manoel Santos, e a principal guerrilha do país, as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC). Os acordos de paz eram o resultado de um difícil processo de negociação que havia tido início em agosto de 2012, em Havana, e que incluía a desmilitarização das FARC e sua conversão em partido político, o Comunes. Por outro lado, entre os compromissos assimidos pelo Estado colombiano, destacava-se o compromisso com a promoção de uma reforma agrária, como forma de solucionar um dos problemas de origem do conflito nacional.


Diante da pergunta "Você apoia o acordo final para o término do conflito e a construção de uma paz estável e duradoura?", o "Não" obteve 50,21% dos votos. A abstenção, na ocasião, foi histórica: 62,59% da população não compareceu à votação.


Este resultado mostrou o sucesso da campanha pelo "Não", promovida principalmente pelo ex-presidente Álvaro Uribe e que articulou os afetos de medo, indignação e desejo de vingança experimentados por uma fração significativa da população colombiana. Esta parcela da população experimentava especial rechaço pela ideia de que os ex-guerrilheiros que cooperassem com o processo de justiça transicional fossem anistiados e reintegrados à sociedade. Curiosamente, o "Não" foi especialmente votado nas zonas urbanas do país, aquelas menos afetadas de maneira direta pelo conflito interno.


A Comissão da Verdade


A criação de uma Comissão para o Esclarecimento da Verdade, a Convivência e a Não Repetição foi um dos pontos pactados pelo governo de Juan Manuel Santos e as FARC durante o processo de negociação dos Acordos de Paz. Este mecanismo de justiça transitória era entendido como fundamental para o processo de cura e de reconciliação a que o país pretendia se submeter e suas atividades tiveram início formal em novembro de 2018.


Os trabalhos da Comissão da Verdade colombiana se deu sob a liderança do sacerdote jesuíta Francisco de Roux, cuja atuação na construção da paz, pela reconciliação do país e pela garantia da dignidade às vítimas do conflito armado é amplamente reconhecida. Ademais de Roux, a Comissão é integrada por outras 10 pessoas e atua como um corpo colegiado independente do governo e dos partidos políticos. Os seus membros se destacam por uma longa atuação em defesa dos direitos humanos, da justiça social e dos direitos das mulheres, por terem acompanhado de perto a trajédia da guerra. A Comissão contou, ademais, com a colaboração de universidades, centros de pesquisa e de organizações não governamentais que trabalham há anos na documentação e na reflexão acerca das causas e dos impactos do conflito.


O informe produzido pela Comissão da Verdade tinha como propósito o reconhecimento da violência praticada pelos atores dos conflito, das mortes de milhares de pessoas inocentes e do sofrimento causado a outros milhares de indivíduos que se viram forçados a abandonar as suas casas, e até mesmo o seu país, como forma de sobreviver às barbaridades que haviam se tornado cotidianas na Colômbia.


O Informe da Verdade


Em 28 de junho deste ano, a Comissão da Verdade colombiana tornou público o relatório sobre o qual vinha trabalhando há quatro anos e que é o resultado de mais de 14 mil entrevistas realizadas com vítimas e vitimários da guerra que assola o país há 58 anos. O documento, intitulado "Hay futuro si hay verdad" , reproduz os testemunhos escutados de indígenas, trabalhadores rurais e afro-colombianos, as principais vítimas do conflito, mas também de militares, ex-guerrilheiros, paramilitares, políticos e empresários.


O chamado Informe da Verdade está composto por 10 capítulos, organizados 24 tomos e em cerca de 8 mil páginas que detalham o sofrimento, a violência e o desrespeito aos direitos humanos ococrridos neste período, ademais de oferecerem uma série de recomendações para que estes episódios não voltem a ocorrer no futuro. Os seus resultados devem ser divulgados, ademais de em texto, através de peças teatrais, exposições e documentários.


De início, o que mais chama a atenção no documento é a revisão da cifra de pessoas mortas em razão do conflito interno: 450 mil, quase o dobro do estimado até aqui. Mais de 80% destas vítimas eram civis não combatentes . Ademais, cerca de 34 mil crianças foram recrutadas à força pelos atores não estatais apenas nos últimos 30 anos de conflito. Diante destes números, é assustador o resultado de uma pesquisa feita pela Comissão, segundo a qual 40% dos colombianos afirmam não conhecer a história da guerra e outros 35% afirmam conhê-la "mais ou menos".


Entre os temas discutidos pelo informe, está a questão da política de segurança nacional adotada pela Colômbia nas últimas décadas. Segundo os autores do relatório, esta política tratou a grande parte da população colombiana como inimigo interno, o que explica o número alarmante de mortos ao longo do conflito. Para superar este quadro, eles afirmam, não há alternativa se não a promoção de uma ampla transformação das forças policiais e do Exército.


A comunidade de colombianos que forçosamente tiveram que exilar-se em razão do conflito também ofereceu importante contribuição para o Informe e contam com um capítulo especial para contar as suas histórias. Mais de um milhão de pessoas tiveram que deixar o país ao longo das últimas décadas e suas histórias são retratadas pelos mais de 2 mil testemunhos de colombianos que vivem atualmente em 24 países diferentes. Entre os relatos desta diáspora, é frequente os sentimentos de culpa por ter conseguido fugir do país - especialmente nos casos em que alguém muito próximo terminou vitimado pela guerra - e o desarraigo, comum especialmente entre os que imigraram ainda crianças ou entre os filhos nascidos no exílio. Ademais, estas pessoas destacam, uma e outra vez, que não deixaram a Colômbia porque assim queriam, mas porque esse era o único recurso que lhes restava depois de sucessivas experiências de violência.


O relatório também dedicou uma seção para denunciar a responsabilidade que os Estados Unidos (EUA) possuem sobre o agravamento do conflito colombiano, uma vez que a Guerra às Drogas promovida por este país e a cooperação firmada com o vizinho sul-americano através do Plano Colômbia apresentou resultados sociais e ambientais assombrosos. A tão questionada prática da fumigação aérea de glifosato sobre os cultivos de coca produziu enormes impactos sobre a saúde da população camponesa e sobre o meio ambiente e encontra-se suspensa no país desde 2015 - embora tenham ocorrido esforços por parte do atual presidente, Iván Duque, de retomar tais práticas.


Ademais, o relatório da Comissão da Verdade também destaca as evidências contidas em documentos desclassificados que foram organizados pela organização não-governamental Arquivo de Segurança Nacional e publicados pelo jornal The New York Times, segundo as quais se confirma aquilo que muitos colombianos já sabiam: diferentes governos dos EUA mantiveram a cooperação com as Forças Armadas colombianas, apesar de saberem à respeito das diversas execuções extrajudiciais praticadas pelo Exército da Colômbia.


Os documentos também comprovam que os EUA haviam trabalhado em colaboração com grupos paramilitares, facções de extrema-direita responsáveis por mais de 200 mil assassinatos ao longo das últimas décadas, e que sabiam da cooperação entre a Quarta Brigada do Exército colombiano e o Cartel de Medellin com o fim de assassinar a militantes de esquerda do país. Eles indicam, ademais, a satisfação de autoridades dos EUA com um dos escândalos mais crueis de todo o conflito, o dos falsos positivos. Em 2003, enquanto o governo de Álvaro Uribe promovia o assassinato de milhares de civis e os apresentava como "baixas" do combate contra as FARC, o então secretário de Defesa dos EUA, Donald Rumsfeld felicitava a Uribe pelos incríveis números.


As recomendações da Comissão da Verdade


Entre as recomendações trazidas pela Comissão da Verdade da Colômbia, destaca-se o reconhecimento e o adequado enfrentamento dos fatores sem os quais o conflito interno não teria se prolongado por mais de cinco décadas. Por exemplo, o abandono por parte do Estado aos setores sociais mais vulneráveis, em especial os jovens indígenas, camponeses e afrocolombianos que, em razão da extrema pobreza e da constante lógica da violência nas zonas por eles habitadas, se tornam mais suscetíveis ao recrutamento dos grupos armadados.


Ademais, a Comissão da Verdade daz um especial chamado para que se realize uma reforma generalizada nas Forças Armadas colombianas, ator que cometeu inúmeros abusos ao longo da guerra. Elas devem, segundo a Comissão, ter seu foco redirecionado para a proteção dos direitos humanos e para a plena observação das normas internacionais. Ademais, é recomendada a criação de uma polícia civil, já que, na Colômbia, a polícia é uma instituição militarizada.


Outra recomendação da Comissão é o fim da guerra às drogas. Neste aspecto, o Informe afirma que o narcotráfico é, mais do que qualquer outra coisa, uma força política com presença total na sociedade colombiana e, portanto, o uso de medidas puramente repressivas contra ela é ineficiente. Da mesma forma, se recomenda o fim da prática de fumegações aéreas e que se repense a prática de extradição de narcotraficantes, uma vez que ela pode configurar uma violação de direitos.


Conclusão


Apesar de tudo o que representa do ponto de vista da sanação do país, a Comissão da Verdade e o seu relatório acabaram sendo engolidas pela quase crônica polarização que assola a Colômbia. Sintomático disso foi que o atual presidente, o conservador e grande crítico dos acordos de paz Iván Duque, nem ao menos compareceu à cerimônia de encerramento das atividades da Comissão, assim como já havia se ausentado da cerimônia inaugural, ocorrida há quatro anos. No mesmo dia da publicação do informe final, o partido de Duque, o uribista Centro Democrático, publicou um comunicado de imprensa afirmando que, por respeito à Lei de Vítimas, não considera apropriado que "se estabeleçam verdades definitivas ou dogmáticas sobre o conflito e seus atores". Segundo o partido, escutar as versões de distintos atores não nos leva a uma "verdade jurídica", mas a uma "verdade interpretativa" e controversial.


Por outro lado, o presidente recém-eleito, Gustavo Petro, e sua vice, Francia Márquez, não apenas compareceram ao evento como se comprometeram com o público ali presente a converter a plena implementação dos acordos de paz em uma prioridade para o novo governo, este que será o primeiro de esquerda da história colombiana e cuja vitória eleitoral não teria sido possível sem o comprometimento assumido pelos negociadores destes mesmos acordos de paz.


Agora, finalizado o período previsto para os trabalhos da Comissão da Verdade na Colômbia, os seus integrantes têm a importante tarefa de divulgar os seus resultados e de orientar a sociedade em direção a debates fundamentais para que a Colômbia possa, enfim, confrontar a barbaridade de seu passado e sentar as bases para a tão necessária reconciliação nacional.



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