Mais de 50 artistas protestaram contra a violência policial em frente ao Palácio de la Moneda representando os chilenos que perderam seus olhos e exigindo justiça
Fonte: Marucela Ramirez/ TelesurTV
Na terça-feira da semana passada (29/03), a Anistia Internacional, Organização Não Governamental que defende os direitos humanos, lançou o “Informe 2021/2022 – a situação dos Direitos Humanos no mundo”. O informe, disponível de forma online e gratuita, apresenta um panorama da questão por região (África, América, Ásia e Oceania, Europa e Ásia Central e Oriente Médio e Norte da África) e por país considerando a situação dos direitos humanos em 154 países em 2021.
Segundo o informe, o ano de 2021 trouxe esperança e promessas. Esperança de que a vacinação contribuiria para o combate coletivo da pandemia de Covid-19 e promessas de colaboração para a “reconstrução social” em distintas partes do mundo por países e grupos, como o G7 e o G20. Apesar dos esforços e de iniciativas propositivas de alguns países e grupos ao longo de 2021, diversos acontecimentos, que envolveram diferentes atores do cenário internacional, alimentaram a decepção, o ceticismo e a insegurança.
Corrida pelas vacinas, armazenamento e vencimento de doses excedentes [1], embates e resistência para incrementar a produção vacinal, descompasso da vacinação do mundo e continuidade ou início de conflitos entre países são alguns dos acontecimentos que se traduziram em violações dos direitos humanos e demonstraram que, a despeito de vivermos em um cenário pandêmico, que demanda uma cooperação mundial, o “interesse nacional” imperou na maioria das vezes. Nas palavras de Agnès Callamard, secretária geral da Anistia: “2021 deveria ter sido um ano de cura e de recuperação. Em vez disso, tornou-se uma incubadora de mais desigualdades e instabilidade, não só para o presente, 2021 ou 2022, mas por toda a década que aí vem”.
Neste contexto pandêmico, de aprofundamento das desigualdades sociais e do incremento das insatisfações e manifestações populares, houve uma instrumentalização da pandemia pelos governos que em muitos momentos justificaram a adoção de medidas mais autoritárias e restritivas para “conter a desinformação e a propagação do vírus”. Com esta “justificativa”, reprimiram a dissidência e a contestação das vozes independentes e críticas. Deste modo, a pandemia também escancarou e, em alguns países aumentou, as recorrentes violações dos direitos humanos com casos envolvendo a censura à liberdade de imprensa, abuso policial, repressão às manifestações populares e ataques, detenções arbitrárias e assassinatos de jornalistas, opositores e defensores dos direitos humanos.
Américas: uma das regiões mais perigosas do mundo para a defesa dos direitos humanos
O informe tem uma parte dedicada para as “Américas”, mas também trata da situação dos direitos humanos em alguns países da América Latina e Caribe, como Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Cuba, Equador, El Salvador, Guatemala, Haiti, Honduras, México, Nicarágua, Paraguai, Peru, Porto Rico, República Dominicana, Trinidade e Tobago, Uruguai e Venezuela. Foram relatadas preocupações pelas mais variadas temáticas, a saber: direitos econômicos, sociais e culturais; direito à saúde; direitos sexuais e reprodutivos; direitos dos povos indígenas; liberdade de expressão e de reunião; uso excessivo da força; detenções arbitrárias e desaparecimentos forçados; defensores dos direitos humanos; impunidade e acesso à justiça; violência contra mulheres e meninas; direitos de lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros e intersexuais (LGBTI); direitos das pessoas refugiadas e imigrantes; e negligência no enfrentamento da crise climática. Cada uma destas temáticas e dos países poderiam ser tratados em uma coluna específica e certamente serão retomados em colunas futuras. Nesta apresentaremos um panorama do que foi mencionado no informe focando em algumas das temáticas.
Segundo o informe, a região apresenta os mais elevados índices de mortalidade e de casos de infectados por Covid-19 no mundo e, embora vários governos da região tenham implementado programas para enfrentar as consequências da pandemia, muitos não protegeram os direitos econômicos, sociais e culturais das populações mais vulneráveis. Ainda de acordo com o informe, antes mesmo da Covid-19, as Américas apresentavam as maiores taxas de desigualdade social que qualquer região do mundo. Sendo assim, apesar da retomada do crescimento econômico em alguns países da região durante 2021, os ganhos foram insuficientes para reverter a recessão econômica de 2020, em que o desemprego, a diminuição de receita, o aumento da pobreza e da desigualdade alcançaram níveis sem precedentes (CEPAL, 2021; ANISTIA INTERNACIONAL, 2021).
Este cenário de profunda desigualdade social alimentou ou gerou mais violência e uma série de críticas na sociedade civil. Coincidindo com a perspectiva do informe, um balanço da Insight Crime de 2021 também apontou para o aumento acentuado de assassinatos na região, especialmente em um contexto em que a pandemia dificultou o trabalho da polícia por conta dos infectados ou mesmo da substituição de colegas e ampliou a atuação do crime organizado que encontrou novas oportunidades. Costa Rica, El Salvador, Equador, Haiti, Honduras, Guatemala, Jamaica, México, Paraguai, Peru e Venezuela registraram altíssimos índices de violência e de taxa de homicídio da região.
Em relação às críticas da sociedade civil, segundo o informe da Anistia, os direitos à liberdade de expressão, associação e reunião foram ameaçados em vários países da região. Jornalistas e críticos dos governos foram intimidados, hostilizados, ameaçados, censurados, criminalizados ou privados de acesso às informações públicas no Brasil, em Cuba, em El Salvador, na Guatemala, no México, na Nicarágua, no Uruguai e na Venezuela.
Em fevereiro de 2021, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) concedeu medidas cautelares a 34 funcionários do jornal digital salvadorenho El Faro que tinham sido submetidos a hostilidades, ameaças e intimidações. Na Venezuela programas informativos foram proibidos e na Colômbia a Fundação para a Liberdade de Imprensa registrou 402 ataques à imprensa durante a cobertura de protestos sociais. Em julho de 2021, a CIDH recebeu denúncias de que meios de comunicação sofreram violentos ataques por parte de policiais e apoiadores do governo com a prisão de, pelo menos, dez jornalistas.
As manifestações populares nas ruas de vários países da região decorrentes de diversas insatisfações sociais também foram amplamente reprimidas com uso excessivo da força. Houve repressão de protestos em vários países, como Argentina, Chile, Colômbia, Honduras, México, Paraguai, Porto Rico e Venezuela. No Chile, as cifras da Fiscalía Nacional e do Instituto Nacional de Direitos Humanos registraram mais de 8 mil vítimas de violência cometidas por agentes do Estado desde o início das manifestações em 2019. Em março, o Instituto Nacional de Direitos Humanos denunciou que as investigações sobre os mais de 3.000 casos de violações de direitos humanos cometidas durante os protestos sociais de 2019 e 2020 tinham sido paralisados. Nos meses subsequentes, ocorreram avanços em algumas investigações. No final do ano, o Congresso debateu vários projetos de lei para simplificar o acesso das vítimas à reparação civil e proibir expressamente a má conduta policial, como o abuso sexual durante a reclusão e o uso de armas de letalidade reduzida para controlar os protestos. A despeito disso, a polícia chilena continua usando a força excessivamente e ainda há registros de lesões oculares.
Segundo o Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, durante as manifestações da greve nacional da Colômbia, em abril e maio, 46 pessoas morreram (84 para o informe da Anistia), 1.790 ficaram feridas, 298 defensores dos direitos humanos sofreram ataques. Entre os feridos, 103 sofreram traumatismo ocular. Ademais, houve, pelo menos, 60 denúncias de violência sexual. No México, a polícia recorreu a detenções arbitrárias e à violência sexual para silenciar as mulheres que protestavam contra a violência de gênero (INFORME, 2021).
O uso excessivo da força policial não é restrito às manifestações. No Brasil, por exemplo, há diversas denúncias de operações policiais com diversas mortes, como em maio de 2021 quando houve uma operação mortífera pela polícia no Rio de Janeiro que resultou na morte de 27 pessoas na comunidade de Jacarezinho (INSIGHT CRIME, 2021). Na Argentina, um integrante do povo indígena qom foi morto durante uma operação militar pelas forças de segurança da província do Chaco.
De acordo com o informe da Anistia, detenções arbitrárias e desaparecimentos forçados também são motivo de preocupação na região. Casos deste tipo foram denunciados na Colômbia, Cuba, México, Nicarágua e Venezuela. Segundo a Campanha em Defesa pela Liberdade, 3.275 pessoas foram detidas arbitrariamente durante a greve nacional na Colômbia e o Grupo de Trabalho sobre Desaparecimentos Forçados registrou que 327 pessoas estão desaparecidas. Ainda segundo o informe, as autoridades cubanas prenderam arbitrariamente centenas de pessoas por exercerem seu direito à liberdade de expressão e de reunião pacífica no dia 11 de julho.
Na Nicarágua, nos meses que antecederam a reeleição do presidente Daniel Ortega em novembro, a polícia deteve sete possíveis aspirantes candidatos à presidência e dezenas de defensores e defensoras dos direitos humanos, jornalistas e pessoas contrárias ao governo. Na Venezuela, de acordo com a organização de direitos humanos Foro Penal, as forças de segurança do país detiveram arbitrariamente 44 ativistas políticos, estudantes e defensores de direitos humanos.
Neste contexto, a Anistia Internacional considera que as Américas seguem sendo uma das regiões mais perigosas do mundo para os defensores dos direitos humanos. Pessoas que defendiam os direitos humanos foram assassinadas no Brasil, na Colômbia, na Guatemala, no Haiti, em Honduras, no México, no Peru e na Venezuela. No caso da Colômbia, o dado também foi registrado pela ONG Global Witness que qualificou o país como onde mais se registravam ataques contra pessoas que trabalham com questões ambientais e de direitos humanos. Os defensores dos direitos humanos também sofreram ameaças, violência, detenções arbitrárias e violências na Bolívia, no Chile, em Cuba, no Equador, em El Salvador, na Guatemala, em Honduras, no México e na Nicarágua.
A impunidade e o acesso à justiça continuam sendo motivo de preocupação em mais da metade dos países da região. Segundo o informe, a independência judicial sofreu ataques constantes no Brasil, na Bolívia, em El Salvador, na Guatemala, em Honduras, na Nicarágua, no Paraguai e na Venezuela. No Brasil, os homicídios da vereadora Marielle Franco e de seu motorista Anderson Gomes, de 2018, seguem sem uma resolução. De acordo com o informe e a ONG Global Witness, Brasil está entre os países que tem o maior número de homicídios de líderes ambientalistas e defensores do direito da terra.
Em El Salvador, por exemplo, a Assembleia Legislativa adotou uma série de medidas que limitavam a independência do poder judicial, como a destituição dos membros da Câmara Constitucional do Supremo Tribunal de Justiça e do Procurador-Geral da República. Na Guatemala, membros do Judiciário que tem um papel decisivo na luta contra a impunidade em casos de violações graves dos direitos humanos e de corrupção foram destituídos ou impedidos de assumir seus cargos. Na Nicarágua, o presidente Daniel Ortega continuou usando o Legislativo e o Judiciário para implementar suas táticas repressivas enquanto milhares de vítimas de violações dos direitos humanos esperam por justiça dos delitos cometidos pelos agentes do Estado durante o seu governo.
Uma luta contínua por direitos das “minorias”
Em relação à violência contra mulheres e meninas, segundo o informe da Anistia, a pandemia agravou as desigualdades de gênero já existentes. Ademais, as medidas para proteger as mulheres e as meninas são inadequadas em toda a região. As investigações sobre os casos de violência por motivos de gênero também apresentam deficiências. Em 2021, no México, foram registrados 3.427 homicídios de mulheres, dos quais 887 estavam sendo investigados como feminicídios. Na Colômbia, o Observatório Feminicídios Colômbia denunciou 432 nos oito primeiros meses do ano. No Peru, o número de mulheres vítimas de feminicídio aumentou de 123 e 2020 para 146 em 2021. Além disso, entre janeiro e outubro desapareceram 12.084 mulheres. Em Porto Rico, até maio foram apresentadas 511 denúncias por violência de gênero intrafamiliar. Na Argentina, foram cometidos 256 feminicídios.
No que se refere aos direitos das lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros e intersexuais (LGBTI), o informe considera que houve um avanço limitado no reconhecimento dos direitos das pessoas LGBTI e, por isso, seguem sendo discriminadas e sofrendo violência e homicídio em vários países. Sobre os avanços, a Argentina aprovou documentos de identidade possibilitando que pessoas que se reconhecem como não binárias tenham este registro pessoal e, em junho, o Congresso aprovou uma lei para promover o emprego de pessoas trans. No Chile, foi aprovado um projeto que legaliza o matrimônio entre pessoas do mesmo sexo.
A despeito destes avanços, em boa parte dos países da região, as pessoas LGBTI sofreram atos de violência, alguns inclusive mortais. A Associação Nacional de Travestis e Transexuais do Brasil denunciou que 80 pessoas transgêneros tinham sido vítimas de homicídio no país na primeira metade de 2021 e a Rede Comunitária Trans da Colômbia denunciou homicídios de 30 pessoas trans até novembro.
Sobre os direitos das pessoas refugiadas e imigrantes, milhares de pessoas da Guatemala, Haiti, Honduras e Venezuela fugiram de violações de direitos humanos relacionadas à violência, pobreza, desigualdade e mudança climática. Alguns governos, como do Chile, México, Peru e Trinidade e Tobago, proibiram a entrada de pessoas refugiadas, solicitantes de asilo e imigrantes utilizando a Covid-19 como justificativa.
A pandemia da Covid-19 complexificou a situação regional e impactou de maneiras diversificadas os países, os fluxos migratórios e as populações migrantes. Ante a crise pandêmica e, em consequência, com as crises política, econômica e social, os governos adotaram respostas que variaram entre a restrição e o acolhimento dos migrantes, especialmente dos que estão em situação mais vulnerável. Estas respostas também foram influenciadas pelas eleições de 2021 em alguns países da região – como Bolívia, Peru e Equador – e pela série de protestos contra os governos e as políticas adotadas, sobretudo durante a pandemia, como na Colômbia e no Paraguai (LAGO, 2021).
A pandemia e as medidas tomadas pelos Estados sul-americanos comprometeram, de maneiras diversas, a vida dos imigrantes e refugiados, mas também os deslocamentos humanos na região, gerando consequências com proporções variadas. Além disso, os imigrantes estão entre as categorias mais afetadas pela crise econômica, crescente pobreza e desemprego. Esse contexto pandêmico favoreceu a implementação de medidas estatais que desrespeitam os direitos humanos e o crescimento das formas de discriminação, estigmatização e xenofobia nas sociedades.
O informe da Anistia Internacional se soma a balanços de outras Organizações Não Governamentais e a documentos e declarações que têm sido realizados por Organizações Internacionais, como a Organização das Nações Unidas. Os abusos também têm sido historicamente denunciados pelos diversos movimentos e grupos sociais. Assim, este cenário preocupante reforça que a luta pelos direitos humanos deve ser coletiva.
Referências Bibliográficas
ANISTIA INTERNACIONAL. Informe 2021/2022 Amnistia Internacional. La situación de los derechos humanos en el mundo. Disponível em: https://www.amnesty.org/es/wp-content/uploads/sites/4/2022/03/WEBPOL1048702022SPANISH-1.pdf . Acesso em 2 de abril de 2022.
CEPAL - Comisión Económica para América Latina y el Caribe. Panorama Social da América Latina. Disponível em: https://www.cepal.org/pt-br/comunicados/pobreza-extrema-regiao-sobe-86-milhoes-2021-como-consequencia-aprofundamento-crise. Acesso em 21 de março de 2022.
INSIGHT CRIME. InSight Crime's 2021 Homicide Round-Up. Disponível em: https://insightcrime.org/news/insight-crimes-2021-homicide-round-up/. Acesso em 2 de abril de 2022.
LAGO, Mayra Coan. Política migratória brasileira e comparada na América do Sul. São Paulo: Centro de Estudos Migratórios (CEM), 2021.
Notas:
1: Em setembro, a Anistia Internacional descobriu que os países desenvolvidos dispunham de 500 milhões de vacinas excedentárias, o suficiente para a vacinação completa de vários dos países menos vacinados do mundo. O desperdício de doses inutilizadas, por terem ultrapassado a sua data de validade, é infelizmente sintomática de um mundo sem bússola moral, um mundo que não sabe para onde vai.
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